23 de fev. de 2008

STF ABRE AS PORTAS AO RACISMO

José Roitberg

Hoje, em todos os jornais e provavelmente durante dias em toda a mídia a discussão será apenas uma: a decisão de um ministro do Supremo Tribunal Federal de retalhar a lei de imprensa vigente há 41 anos.

O pedido de liminar para a revogação total da Lei de Imprensa, a 5.250 de 09/fev/1967 foi feito pelo PDT, num pano de fundo muito confuso. É um momento em que o jornal A Folha de São Paulo está sendo processado em diversas cidades, por dezenas de indivíduos, por uma matéria assinada sobre os 30 anos de Igreja Universal do Reino de Deus, onde a jornalista autora, escreve em um dos parágrafos que há uma “hipótese” de lavagem de dinheiro sobre o dízimo em paraísos fiscais.

Isso caracteriza calúnia e difamação, pois um jornalista não pode divulgar hipóteses sobre pessoas ou instituições, ainda mais, quando essas hipóteses podem levar os leitores a imaginar que haja um crime sendo cometido. Um crime é cometido ou não é.

Afirme-se que sim ou não se diga nada, mas dizer que pode ser que haja crime, é um erro primário.

Neste campo minado, jornalista e jornal estão faltando às audiências nos mais diversos cantos do Brasil. Como o jornal é de circulação nacional e Lei de Imprensa é clara quando diz que os “ofendidos” podem pedir direito de resposta ou entrar na justiça pelos crimes de calúnia e difamação, “ofendidos” surgiram em todas as partes.

A reação foi implacável. Um partido político, o PDT pede uma liminar ao STF alegando que a Lei de Imprensa viola preceitos constitucionais. Ora, hoje? Nesse momento? Não violou nada durante 20 anos desde 1988? A Constituição é a mesma! Há duas semanas atrás a lei era aceitável e quando um caso grave surge a lei simplesmente é derrubada? Por uma pessoa?

Proteção ao Estado e ao Cidadão

A Lei de Imprensa sempre serviu para proteger o Estado e proteger o cidadão dos excessos, erros, má conduta, má intenção ou má apuração de fatos pela mídia. O que o Ministro Carlos Ayres Brito fez foi retirar a proteção ao cidadão, a proteção ao Estado, a proteção à maioria e a proteção às minorias! Quem fica protegido neste caso? A empresa jornalística, eu e meus colegas jornalistas, que sempre tiveram a liberdade de se expressar com punição pelos excessos e abusos. Agora, pode-se abusar sem receio.

A liminar tem um efeito sinistro como publicado pelo site do STF: “O ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que juízes e tribunais suspendam o andamento de processos e os efeitos de decisões judiciais ou de qualquer outra medida que versem sobre alguns dispositivos da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67).

A decisão liminar, deferida parcialmente, deverá ser referendada pelo Plenário do Supremo.”

Isso significa que todos os processos da Igreja Universal do Reino de Deus contra a Folha de SP estão suspensos. E também significa, analisado o resto do relatório do Ministro que pode ser baixado em pdf neste link, que todas as condenações baseadas na Lei de Imprensa estão canceladas. O que foi crime durante 41 anos não é mais crime...

Em princípio, eu, pessoalmente concordo com quase todos os artigos que o Ministro Carlos Ayres Brito detonou. Nenhum jornal citou, mas há dois projetos de novas Leis de Imprensa tramitando no Legislativo. Um de 1995 aprovado pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática e outro de 1997 aprovado pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados. São aspirações de 23 e 21 anos de processo atravancado que modernizariam e atualizariam a Lei de Imprensa.

A maioria dos artigos cassados pelo Ministro seriam retirados mesmo nas duas propostas. Outros seriam incluídos, levando em conta os meios digitais, satélite e outras modernidades. A técnica da mídia não aguarda os anos de processo legislativo.

Coisa óbvias como crimes do Código Penal, tipificados também na Lei de Imprensa, com penas diferentes tem mesmo que ser removidos, como o Ministro fez. Algumas obrigatoriedades de registros de controle das empresas jornalísticas e dos jornalistas, também. Com certeza você não sabe que há apenas duas profissões no Brasil que precisam de registro especial na Carteira de Trabalho com identificação completa individual dos profissionais: segurança e jornalista. Isso é um dos abusos do Regime Militar, mas contra os quais ninguém decidiu detonar até agora.

Mas a alegação do PDT de que a Lei de Imprensa foi criada pelo Regime Militar e que por isso deve ser cancelada, é completamente errônea. Não foi através dos artigos da Lei de Imprensa que jornalistas foram perseguidos e cassados, nem jornais e outras publicações censurados ou fechados: foi através dos Atos Institucionais, já revogados há décadas. Estamos vendo um casuísmo onde, novamente, o poder Judiciário, considera que pode legislar, alterando leis básicas e acessórias de nossa sociedade.

Arbitrariedade

A arbitrariedade da criação da Lei, alegada pelo PDT e pelo Ministro é estranha. Em 1967 a Lei não surgiu da cabeça de uma pessoa. Agora ela pode ser derrubada pela interpretação arbitrária de uma pessoa num processo que está muito longe de nossa democracia.

Os 22 artigos anulados pelo Ministro têm certas incoerências. À primeira vista, leitores acharão que é contra a sociedade e outros que é a favor da sociedade. Um dos artigos derruba o prazo de três meses a partir da publicação de uma notícia para que o interessado recorra à justiça em busca de indenização ou resposta.

Ora, isso é bom ou mau? No meu entender, significa que não há mais prazo, portanto as notícias e seus abusos tornaram-se imprescritíveis e isso pode ser terrível pois nada impede que uma notícia errada de 50 anos atrás seja processada nesta segunda-feira. Creio, inclusive que os interessados deveriam correr aos plantões judiciais ainda hoje, enquanto isso está em vigor...

Agora, outras decisões do Ministro Carlos Ayres Brito, são inconstitucionais, pois violam direitos fundamentais e outras leis federais, estaduais e municipais existentes e que não estão vinculadas à Lei de Imprensa. Ou seja: se cair a Lei de Imprensa, coisa que duvido, as leis contra o racismo não cairão. Mas um dos artigos anulados pelo Ministro do STF é o que permite a apreensão e destruição de livros e outras publicações que façam a propaganda de preconceito racial ou que sejam considerados ofensivos à moral!

Isso é inadmissível! Caindo isso, o Ministro decide sozinho que está liberada a publicação de material racista por qualquer mídia existente no Brasil. Junto com outro artigo que elimina a classificação de censura para espetáculos e diversões pública, contra várias outras leis e portarias, significa que mesmo enquadaradas nas leis de racismo, as publicações não poderão ser recolhidas!

Nada mais impede que se faça shows racistas, programas de TV e rádio racistas, sites racistas etc. Note que quem decidiu pela proibição de racismo na mídia foi o governo militar lá atrás em 1967 e isso era uma garantia fundamental consolidada na sociedade brasileira.

A favor do racismo

O Ministro Carlos Ayres Brito foi um dos três ministros que em 2003 votaram a favor de Siegfireid Elwanger Castan no pedido de hábeas corpus (não concedido) sobre sua condenação pela publicação de farta literatura nazista e anti-semita, através da Editora Revisão. Em seu parecer, o Ministro concordava com o réu que afirmava: como os judeus não são raça, não posso ser processado por racismo...

Mas a interpretação da maioria absoluta do STF de acordo com a Constituição e todas as outras Leis é de que preconceito racial é apenas uma das formas de racismo, restando ainda o preconceito contra religião, contra origem nacional e outros. Em seus livros, Castan reiteradamente chama os judeus de “raça”.

A queda temporária desses artigos da Lei de Imprensa não influi no processo contra os editores de Mein Kampf, de Hitler, e dos Protocolos dos Sábios de Sião, apócrifo, baseados na Constituição, na Lei Caó e outras, e não da lei de imprensa.

Curioso... O Deputado Miro Teixeira (PDT), que consta como autor do pedido de liminar, estava na solenidade do Dia Mundial de Memória das Vìtimas do Holocausto no RJ há poucas semanas atrás...

Peço aos Ministros do STF e os Parlamentares que derrubem sim os artigos trepados entre a Lei de Imprensa e as outras, mas que restaurem imediatamente a proteção ao cidadão! Que o Legislativo legisle e que o Judiciário julgue! Se tiverem tempo, podem até ver onde foram parar as propostas de 1995 e 1997 colocando-as novamente em pauta.
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José Roitberg é jornalista e diretor de Comunidade na TV