13 de fev. de 2011

COMO REINVENTAR O CAPITALISMO

O capitalismo está sitiado…. A queda na confiança em empresas está levando legisladores a soltar normas que inibem o crescimento econômico…. O meio empresarial caiu num círculo vicioso…. O novo propósito da empresa deve ser a criação de valor compartilhado.

Michael E. Porter e Mark R. Kramer

O sistema capitalista está sitiado. Nos últimos anos, a atividade empresarial foi cada vez mais vista como uma das principais causas de problemas sociais, ambientais e econômicos. É generalizada a percepção de que a empresa prospera à custa da comunidade que a cerca.

Para piorar, quanto mais adotou a responsabilidade empresarial, mais a empresa foi sendo responsabilizada pelos problemas da sociedade. Em certos países, a legitimidade da atividade empresarial caiu a níveis inéditos na história recente. Essa queda na confiança leva lideranças políticas a instituir normas que minam a competitividade e inibem o crescimento econômico. O meio empresarial entrou num círculo vicioso.

Grande parte do problema está nas empresas em si, que continuam presas a uma abordagem à geração de valor surgida nas últimas décadas e já ultrapassada. Continuam a ver a geração de valor de forma tacanha, otimizando o desempenho financeiro de curto prazo numa bolha e, ao mesmo tempo, ignorando as necessidades mais importantes do cliente e influências maiores que determinam seu sucesso a longo prazo. Só isso explica que ignorem o bem-estar de clientes, o esgotamento de recursos naturais vitais para sua atividade, a viabilidade de fornecedores cruciais ou problemas econômicos das comunidades nas quais produzem e vendem. Só isso explica que achem que a mera transferência de atividades para lugares com salários cada vez menores seria uma “solução” sustentável para desafios de concorrência. O governo e a sociedade civil não raro exacerbam o problema ao tentar corrigir deficiências sociais à custa da empresa. Os supostos trade-offs entre eficiência econômica e progresso social foram institucionalizados em décadas de políticas públicas.

A empresa deve liderar a campanha para voltar a unir a atividade empresarial e a sociedade. Líderes empresariais e intelectuais sofisticados já sabem disso; começam a surgir elementos promissores de um novo modelo. Ainda não temos, no entanto, um marco geral para nortear essa iniciativa — e a maioria das empresas continua presa a uma mentalidade de “responsabilidade social” na qual questões sociais estão na periferia, não no centro.

A solução está no princípio do valor compartilhado, que envolve a geração de valor econômico de forma a criar também valor para a sociedade (com o enfrentamento de suas necessidades e desafios). É preciso reconectar o sucesso da empresa ao progresso social. Valor compartilhado não é responsabilidade social, filantropia ou mesmo sustentabilidade, mas uma nova forma de obter sucesso econômico. Não é algo na periferia daquilo que a empresa faz, mas no centro. E, a nosso ver, pode desencadear a próxima grande transformação no pensamento administrativo.

Um número crescente de empresas conhecidas pela abordagem pragmática aos negócios — nomes como GE, Google, IBM, Intel, Johnson & Johnson, Nestlé, Unilever e Walmart — já embarcou em iniciativas importantes para gerar valor compartilhado ao redefinir a interseção entre sociedade e desempenho empresarial. Contudo, o reconhecimento do poder transformador do valor compartilhado ainda é incipiente. Para que se materialize, líderes e gerentes terão de adquirir novas habilidades e conhecimentos — como, por exemplo, uma apreciação muito mais profunda das necessidades da sociedade, uma maior compreensão das verdadeiras bases da produtividade da empresa e a capacidade de transpor a fronteira entre as esferas com e sem fins de lucro para colaborar. Já o poder público precisa aprender a regular de modo a fomentar — e não obstruir — o valor compartilhado.




O capitalismo é um veículo inigualável para a satisfação das necessidades humanas, o aumento da eficiência, a criação de emprego e a geração de riqueza. Só que uma concepção estreita do capitalismo impediu que a atividade empresarial explorasse todo seu potencial para enfrentar os grandes desafios da sociedade. As oportunidades sempre estiveram aí, mas foram negligenciadas. Uma empresa atuando como empresa, não como um ente filantrópico, é o agente mais forte para lidar com as prementes questões a nossa frente. O momento para uma nova concepção do capitalismo é agora; as necessidades da sociedade são grandes e seguem crescendo. Já clientes, trabalhadores e uma nova geração de jovens estão pedindo que o meio empresarial tome a dianteira.

O propósito da empresa deve ser redefinido como o da geração de valor compartilhado, não só o do lucro por si só. Isso alimentará a próxima onda de inovação e crescimento da produtividade na economia global. Também irá redefinir o capitalismo e sua relação com a sociedade. E aprender a gerar valor compartilhado talvez seja a melhor oportunidade a nosso dispor para legitimar de novo a atividade empresarial.

Além dos trade-offs

O antagonismo entre a atividade empresarial e a sociedade é de longa data. É assim, em parte, porque economistas legitimaram a ideia de que, para beneficiar a sociedade, a empresa deve moderar seu sucesso econômico. No ideário neoclássico, a necessidade de progresso social — como a segurança ou a contratação de deficientes — impõe limites à atividade empresarial. Acrescentar alguma limitação a uma empresa que já está maximizando lucros, reza a teoria, inevitavelmente aumentará custos e reduzirá tal lucro.

Um conceito correlato, com a mesma conclusão, é a noção de externalidades. Surgem externalidades quando a empresa gera custos sociais com os quais não precisa arcar, como a poluição. Logo, a sociedade deve impor impostos, normas e sanções para que a empresa “internalize” essas externalidades — crença que influencia muitas políticas públicas.

Essa perspectiva também moldou a estratégia das próprias empresas, que basicamente excluíram considerações sociais e ambientais de seu raciocínio econômico. A empresa tomou como dado o contexto maior no qual opera e resistiu a padrões regulamentares como invariavelmente contrários a seus interesses. A solução de problemas sociais foi entregue a governos e a ONGs. Programas de responsabilidade empresarial — uma reação a pressões externas — surgiram basicamente para melhorar a reputação da empresa e são tratados como um gasto necessário. Tudo o mais é visto por muitos como um uso irresponsável do dinheiro de acionistas. O poder público, por sua vez, não raro regula de modo a dificultar a geração de valor compartilhado. Implicitamente, cada lado assume que o outro é um obstáculo a suas metas e age como se fosse.

O conceito de valor compartilhado, em contrapartida, reconhece que as necessidades da sociedade, e não só necessidades econômicas convencionais, definem o mercado. Reconhece, ainda, que mazelas ou deficiências sociais volta e meia criam custos internos para a empresa — como o desperdício de energia ou matéria-prima, acidentes onerosos e necessidade de treinamento corretivo para compensar insuficiências na educação. O enfrentamento de mazelas e limitações da sociedade não eleva necessariamente o custo da empresa, pois esta pode inovar com o emprego de novas tecnologias, métodos, operações e abordagens de gestão — e, como resultado, aumentar a produtividade e expandir seus mercados.

O valor compartilhado, portanto, não tem a ver com valores pessoais. Nem tem a ver com a “partilha” do valor já gerado pela empresa — uma abordagem de redistribuição. Trata-se, antes, de aumentar o bolo total do valor econômico e social. Um bom exemplo dessa diferença de perspectiva é o movimento “fair trade” no comércio. A meta do fair trade é aumentar a parcela de receita que vai para agricultores de baixa renda com o pagamento de um preço mais elevado pelos mesmos produtos. Embora o sentimento possa ser nobre, o comércio justo tem a ver basicamente com redistribuição, não com a expansão do bolo total de valor gerado. Já a perspectiva do valor compartilhado se concentra em melhorar técnicas de cultivo e fortalecer o cluster local de fornecedores e outras instituições de apoio, a fim de aumentar a eficiência, o rendimento, a qualidade e a sustentabilidade das lavouras. Isso leva a um bolo maior de receita e lucro que beneficia tanto o lavrador como a empresa que compra dele. Estudos iniciais de plantadores de cacau na Costa do Marfim, por exemplo, sugerem que, enquanto o comércio justo pode elevar em 10% a 20% a renda do agricultor, investimentos de valor compartilhado podem aumentar essa renda em mais de 300%. Talvez sejam necessários tempo e um investimento inicial para a implementação de novas práticas de compras e o desenvolvimento do cluster de apoio, mas o retorno será um valor econômico maior e maiores benefícios estratégicos para todos os envolvidos.




Raízes do valor compartilhado

Num nível muito básico, a competitividade de uma empresa e a saúde das comunidades a seu redor estão intimamente interligadas. Uma empresa precisa de uma comunidade vicejante não só para gerar demanda para seus produtos, mas também para suprir ativos públicos essenciais e um ambiente favorável. Uma comunidade precisa de empresas prósperas para criar empregos e oportunidades de geração de riqueza para seus cidadãos. Essa interdependência significa que políticas públicas que solapem a produtividade e a competitividade de empresas são autodestrutivas, sobretudo numa economia globalizada, na qual instalações e empregos podem facilmente rumar para outro lugar. ONGs e governos nem sempre entenderam essa ligação.

Na velha e estreita visão do capitalismo, a empresa contribui para a sociedade ao dar lucro, o que sustenta emprego, salários, consumo, investimentos e impostos. Tocar a empresa como sempre seria um benefício social suficiente. A empresa é, em grande medida, um ente autossuficiente, e questões sociais ou comunitárias estão fora de sua alçada (essa é a tese convincentemente defendida por Milton Friedman em sua crítica à noção da responsabilidade social empresarial).

Essa perspectiva permeou o pensamento administrativo nas duas últimas décadas. A empresa se concentrou em incitar o consumidor a comprar mais e mais de seus produtos. Diante da crescente concorrência e da pressão de acionistas por resultados de curto prazo, gestores recorreram a ondas de reestruturação, corte de pessoal e transferência para regiões de menor custo, alavancando paralelamente o balanço para devolver capital aos investidores. O resultado em geral foi comoditização, disputa em preços, pouca inovação de verdade, crescimento orgânico lento e nenhuma vantagem competitiva clara.

Nesse tipo de competição, as comunidades nas quais a empresa opera sentem que pouco ganham, ainda que os lucros subam. O que sentem, isso sim, é que o lucro se dá a sua custa, impressão que se tornou ainda mais forte na atual recuperação econômica em certos países, na qual lucros crescentes pouco fizeram para compensar o elevado desemprego, a crise em negócios locais e severas pressões sobre os serviços da comunidade.

Nem sempre foi assim. No passado, as melhores empresas assumiam uma ampla gama de papéis para atender às necessidades de trabalhadores, comunidades e operações de apoio. À medida que outras instituições sociais entraram em cena, contudo, esses papéis foram abandonados ou delegados. O horizonte de tempo cada vez menor do investidor começou a estreitar o raciocínio sobre investimentos pertinentes. Com a empresa verticalmente integrada dando lugar a uma maior dependência de fornecedores externos, a terceirização e o offshoring enfraqueceram o elo entre a empresa e a comunidade. Ao distribuir toda sorte de atividade por mais e mais localidades, a empresa não raro perdeu o vínculo com um determinado lugar. Aliás, muitas empresas já não consideram ter uma “casa” — se julgam, antes, “globais”.

Essas transformações levaram a grandes avanços em matéria de eficiência econômica. No entanto, algo profundamente importante se perdeu no processo, à medida que oportunidades mais fundamentais de geração de valor foram ignoradas. O escopo do raciocínio estratégico se contraiu.

Reza a teoria da estratégia que, para ser bem-sucedida, uma empresa precisa criar uma proposta de valor diferenciada que atenda às necessidades de um conjunto visado de clientes. A empresa obtém vantagem competitiva pelo modo como configura a cadeia de valor, ou a série de atividades envolvidas na criação, produção, venda, entrega e suporte de seus produtos ou serviços. Há décadas administradores estudam o posicionamento e a melhor maneira de projetar atividades e integrá-las. Contudo, a empresa deixou passar oportunidades para satisfazer necessidades fundamentais da sociedade e não soube entender o impacto de mazelas e deficiências sociais na cadeia de valor. Nosso campo de visão simplesmente foi muito estreito.

Ao tratar de entender o ambiente de negócios, o gestor põe o grosso de sua atenção no setor, ou na área específica na qual a empresa compete. Isso ocorre porque a estrutura do setor tem um impacto decisivo sobre a rentabilidade de uma empresa. O que passou batido, no entanto, é o profundo efeito que a localização pode ter na produtividade e na inovação. A empresa não entendeu a importância do ambiente maior de negócios que cerca suas principais operações.



Como se gera valor compartilhado

Uma empresa pode criar valor econômico com a criação de valor social. Há três saídas distintas para tal: reconceber produtos e mercados, redefinir a produtividade na cadeia de valor e montar clusters setoriais de apoio nas localidades da empresa. Cada uma delas é parte do círculo virtuoso do valor compartilhado; melhorar o valor em uma área abre oportunidades nas outras.

O conceito de valor compartilhado redefine as fronteiras do capitalismo. Ao conectar melhor o sucesso da empresa com o progresso da sociedade, abre muitas maneiras de atender a novas necessidades, ganhar eficiência, criar diferenciação e expandir mercados.

A capacidade de gerar valor compartilhado existe tanto em economias avançadas como em países em desenvolvimento, embora as oportunidades específicas sejam distintas. As oportunidades também variam marcadamente entre setores e empresas distintos — mas em toda empresa há. E sua variedade e escopo são muito maiores do que o reconhecido até aqui.

Reconceber produtos e mercados

A sociedade tem necessidades imensas — saúde, melhor moradia, nutrição melhor, auxílio para o idoso, maior segurança financeira, menos danos ambientais. É justo dizer que essas são as maiores necessidades ainda não satisfeitas na economia global. No meio empresarial, passamos décadas aprendendo a analisar e a fabricar demanda — ignorando, enquanto isso, a demanda mais importante de todas. Muitas empresas deixaram de lado a mais básica das perguntas: nosso produto é bom para os clientes? Ou para os clientes de nossos clientes?

Em economias avançadas, a demanda de produtos e serviços que atendam às necessidades da sociedade vem rapidamente crescendo. Fabricantes de alimentos que tradicionalmente se concentraram em sabor e quantidade para gerar mais e mais consumo estão se reorientando para a necessidade fundamental de uma melhor nutrição. Intel e IBM estão, ambas, buscando saídas para ajudar concessionárias de serviços básicos a usar a inteligência digital para economizar energia. O banco americano Wells Fargo criou uma linha de produtos e ferramentas que ajudam o cliente a fazer um orçamento, administrar o crédito e pagar dívidas. As vendas da linha Ecomagination da GE chegaram a US$ 18 bilhões em 2009 — tamanho de uma empresa do ranking Fortune 150. A GE hoje prevê que a receita de produtos Ecomagination vá crescer ao dobro do ritmo da receita total da empresa nos próximos cinco anos.

Dessas e de muitas outras maneiras, abrem-se avenidas totalmente inéditas para a inovação, o que gera valor compartilhado. Para a sociedade, os ganhos são ainda maiores, pois em geral a iniciativa privada é muito mais eficaz do que o poder público e o terceiro setor no marketing que motiva o público a adotar produtos e serviços que criam benefícios sociais, como alimentos mais saudáveis ou produtos ecologicamente corretos.

Oportunidades iguais ou maiores surgem do trabalho com comunidades carentes e países em desenvolvimento. Embora ali as necessidades da sociedade sejam ainda mais prementes, essas comunidades ainda não foram reconhecidas como mercados viáveis. Hoje a atenção está voltada à Índia, à China e, cada vez mais, ao Brasil, que dão a empresas a possibilidade de chegar a bilhões de novos clientes na base da pirâmide — tese convincentemente articulada por C.K. Prahalad. Mas esses países sempre tiveram enormes necessidades, como tantas outras nações em desenvolvimento.

Há oportunidades semelhantes em comunidades não tradicionais em países avançados. Já sabemos, por exemplo, que zonas urbanas de baixa renda são o mercado mais subatendido dos Estados Unidos; seu considerável poder aquisitivo concentrado não raro foi ignorado (veja a pesquisa da Initiative for a Competitive Inner City no icic.org).

Os benefícios sociais da oferta de produtos adequados ao consumidor menos favorecido e de baixa renda podem ser profundos; para a empresa, o lucro pode ser considerável. Telefones celulares baratos, que dão acesso a serviços bancários via internet, estão ajudando o pobre a poupar com segurança e transformando a capacidade de pequenos agricultores de plantar e comercializar o que colhem. No Quênia, um serviço de banco por celular da Vodafone, o M-PESA, atraiu dez milhões de clientes em três anos; os fundos que administra hoje representam 11% do PIB do país. Na Índia, a Thomson Reuters criou um promissor serviço mensal para lavradores que ganham, em média, US$ 2 mil por ano. Ao custo de US$ 5 por trimestre, o serviço dá informações meteorológicas, cotação de produtos e assessoria agrícola. Chega a cerca de dois milhões de agricultores e, segundo sondagens iniciais, ajudou a elevar a renda de mais de 60% deles — em certos casos, até triplicando os rendimentos. Quando o capitalismo começa a funcionar em comunidades mais pobres, novas oportunidades para desenvolvimento econômico e progresso social aumentam exponencialmente.

Para a empresa, o ponto de partida para a geração desse tipo de valor compartilhado é identificar todas as necessidades, benefícios e mazelas sociais que estão ou poderiam estar associados aos produtos da empresa. Oportunidades não são estáticas; mudam constantemente conforme a tecnologia evolui, as economias se desenvolvem e prioridades da sociedade mudam. Uma exploração contínua das necessidades da sociedade levará a empresa a descobrir novas oportunidades de diferenciação e reposicionamento em mercados tradicionais e a reconhecer o potencial de mercados novos anteriormente ignorados.

Satisfazer necessidades em mercados subatendidos muitas vezes requer a reformulação de produtos e métodos de distribuição distintos. Isso tudo pode desencadear inovações fundamentais com aplicação também em mercados tradicionais. O microcrédito, por exemplo, foi inventado para satisfazer necessidades não atendidas de crédito em países em desenvolvimento. Hoje, cresce rapidamente nos EUA, onde preenche uma lacuna importante que até então passara batido.

Redefinir a produtividade na cadeia de valor

A cadeia de valor de uma empresa inevitavelmente afeta — e é afetada — por vários temas da sociedade, como uso de recursos naturais e da água, saúde e segurança, condições de trabalho e igualdade de tratamento no local de trabalho. Surgem oportunidades para a criação de valor compartilhado porque problemas sociais podem trazer custos econômicos para a cadeia de valor da empresa. Muitas das chamadas externalidades acarretam um custo interno para a empresa, mesmo na ausência de regulamentação ou taxação de recursos. Produtos com embalagem excessiva e gases do efeito estufa não custam caro só para o meio ambiente, mas para a empresa também. O Walmart, por exemplo, conseguiu abordar essas duas questões ao reduzir embalagens e redirecionar a frota de caminhões para cortar 160 milhões de quilômetros das rotas de entrega em 2009, poupando US$ 200 milhões e, ainda assim, transportando mais coisas. A inovação na eliminação de plásticos usados nas lojas derrubou o custo do descarte em aterros, poupando outros milhões.

O novo raciocínio revela que a congruência entre progresso social e produtividade na cadeia de valor é muito maior do que sempre se acreditou (veja o quadro “O elo entre vantagem competitiva e questões sociais”). A sinergia aumenta quando a empresa aborda desafios da sociedade de uma perspectiva do valor compartilhado e inventa novas maneiras de operar para enfrentá-los. Até agora, porém, poucas empresas colheram todos os benefícios de produtividade em áreas como saúde, segurança, desempenho ambiental e retenção e capacidade de funcionários.




Mas há sinais inequívocos de mudança. Antigamente se achava que iniciativas para minimizar a poluição inevitavelmente aumentariam os custos da atividade empresarial e só ocorreriam por força da regulamentação e de impostos. Hoje, há um crescente consenso de que é possível obter grandes avanços no desempenho ambiental com tecnologias melhores a um custo nominal incremental — avanços que podem até resultar na redução líquida de custos graças ao melhor emprego de recursos, à maior eficiência de processos e a avanços na qualidade.

Em cada uma das áreas do quadro, uma compreensão mais profunda da produtividade e a crescente consciência da falácia da redução de custos a curto prazo (que em geral derruba a produtividade ou a torna insustentável) estão fazendo surgir novas abordagens. Vejamos algumas das grandes áreas nas quais o raciocínio do valor compartilhado está transformando a cadeia de valor — áreas que, longe de independentes, em geral se reforçam mutuamente. Iniciativas nessas e em outras arenas ainda são incipientes e suas implicações se farão sentir por muitos e muitos anos.

Uso de energia e logística. O consumo de energia ao longo da cadeia de valor está sendo revisto, seja em processos, transportes, edificações, cadeias de suprimento, canais de distribuição ou serviços de apoio. Deflagrado por saltos no preço da energia e uma nova consciência de oportunidades para eficiência energética, esse reexame já estava em curso antes mesmo de emissões de carbono terem virado uma preocupação global. O resultado foram avanços incríveis na utilização de energia graças a melhores tecnologias, reciclagem, cogeração e inúmeras outras práticas — práticas que geram valor compartilhado.

Estamos descobrindo que o transporte é caro não só devido ao custo energético e à emissão de poluentes, mas porque aumenta o tempo, a complexidade, custos de estoques e custos de gestão. Sistemas logísticos começam a ser redesenhados para reduzir distâncias de transporte, otimizar o manuseio, melhorar rotas de veículos e por aí vai. Todas essas medidas geram valor compartilhado. A ambiciosa reestruturação da cadeia de suprimento da varejista britânica Marks & Spencer, que inclui medidas simples como parar de comprar mercadorias num hemisfério para despachar a outro, deve poupar à varejista £ 175 milhões ao ano até o exercício fiscal de 2016, derrubando ao mesmo tempo muito de suas emissões de carbono. No processo de rever a logística, a opinião sobre a terceirização e a localização também será revista (como veremos mais adiante).

Uso de recursos. A maior conscientização ambiental e avanços tecnológicos estão catalisando novas abordagens em áreas como utilização da água, matérias-primas e embalagens, bem como a expansão da reciclagem e do reúso. As oportunidades valem para todo recurso, não só os identificados por ambientalistas. A melhor utilização de recursos — viabilizada pelo avanço da tecnologia — chegará a toda parte da cadeia de valor e se alastrará para fornecedores e canais. Aterros vão demorar mais a encher.

A Coca-Cola, por exemplo, já derrubou seu consumo mundial de água em 9% de 2004 para cá — quase metade da meta de redução de 20% até 2012. A Dow Chemical conseguiu reduzir o consumo de água potável em sua maior instalação de produção em quase 4 bilhões de litros — o suficiente para abastecer perto de 40 mil pessoas nos EUA por um ano —, conseguindo economia de US$ 4 milhões. A demanda por tecnologias para economia de água permitiu à indiana Jain Irrigation, fabricante global de sistemas completos de irrigação por gotejamento para conservação de água, atingir uma taxa composta de crescimento anual da receita de 41% nos últimos cinco anos.

Compras. A cartilha tradicional aconselha a empresa a comoditizar e a exercer o máximo poder de barganha sobre fornecedores para derrubar preços — até se estiver comprando de pequenas empresas ou de quem cultiva a terra em regime de subsistência. Mais recentemente, tem havido uma rápida terceirização para fornecedores em localidades de mão de obra mais barata.

Hoje, certas empresas começam a entender que fornecedores marginalizados não têm como seguir produtivos ou sustentar (e muito menos melhorar) a qualidade. Ao aumentar o acesso a insumos, partilhar tecnologias e conceder financiamento, uma empresa pode melhorar a qualidade e a produtividade de fornecedores e, ao mesmo tempo, garantir o acesso a um volume crescente. O aumento da produtividade em geral supera preços mais baixos. À medida que o fornecedor se fortalece, seu impacto ambiental costuma cair drasticamente, o que aumenta ainda mais a eficiência — e gera valor compartilhado.

Um bom exemplo dessa nova mentalidade no suprimento pode ser encontrado na Nespresso, uma das divisões que mais crescem na Nestlé (30% ao ano de 2000 para cá). A Nespresso combina uma sofisticada máquina de café expresso e cápsulas individuais de alumínio com café moído de todo o mundo. Ao oferecer qualidade e conveniência, a Nespresso ampliou o mercado de café nobre.

Garantir o fornecimento confiável de grãos especiais é, contudo, um imenso desafio. A maior parte do café é cultivada por pequenos agricultores em zonas rurais carentes da África e da América Latina, gente presa a um ciclo de baixa produtividade, má qualidade e degradação ambiental que limita o volume da produção. Para enfrentar esses problemas, a Nestlé reformulou o esquema de compras. Trabalhou intensamente com produtores, dando assessoria em práticas agrícolas, garantindo empréstimos bancários e ajudando a conseguir insumos como mudas, pesticidas e fertilizantes. A empresa ergueu instalações locais para avaliar a qualidade do café no ponto da compra, o que lhe permitiu pagar um prêmio por grãos melhores diretamente ao produtor e, assim, aumentar seu incentivo. Um maior rendimento por hectare e a maior qualidade da safra elevaram a renda do agricultor; já o impacto ambiental do cultivo diminuiu. Paralelamente, o suprimento garantido de café de boa qualidade à Nestlé cresceu consideravelmente — o que gerou valor compartilhado.

Nesse exemplo da Nestlé há um insight muito maior, que é a vantagem de comprar de fornecedores locais competentes. A terceirização para outras localidades e países gera custos de transação e ineficiências que podem anular custos menores de mão de obra e insumos. Fornecedores locais competentes ajudam a empresa a evitar esses custos e podem reduzir o tempo de ciclo, aumentar a flexibilidade, acelerar o aprendizado e viabilizar a inovação. Essa compra local não envolve só empresas locais, mas também divisões de companhias nacionais ou internacionais. Quando a empresa compra localmente, seus fornecedores podem ficar mais fortes, ter mais lucro, contratar mais gente e pagar salários melhores, o que acaba beneficiando outras empresas na comunidade — e gerando valor compartilhado.




Distribuição. Muitas empresas estão começando a reavaliar práticas de distribuição da perspectiva do valor compartilhado. Como demonstram iTunes, Kindle e Google Scholar (que oferece textos acadêmicos na internet), modelos novos e rentáveis de distribuição também podem reduzir drasticamente o uso de papel e plástico. Na mesma veia, o microcrédito criou um modelo econômico para levar serviços financeiros a pequenas empresas.

Oportunidades para novos modelos de distribuição podem ser ainda maiores em mercados pouco tradicionais. A Hindustan Unilever, por exemplo, está criando um novo sistema de distribuição direta em residências tocado por empreendedoras de classes desfavorecidas em vilarejos da Índia com menos de 2 mil habitantes. A Unilever dá microcrédito e treinamento e, hoje, tem mais de 45 mil empreendedoras cobrindo cerca de 100 mil povoados em 15 estados indianos. O Projeto Shakti, como é chamado esse sistema de distribuição, beneficia a comunidade não só ao dar à mulher uma capacitação que não raro dobra a renda da família, mas também ao reduzir a propagação de doenças transmissíveis graças ao acesso maior a produtos de higiene. É um bom exemplo de como a capacidade singular de uma empresa de chegar a consumidores fora de mão pode beneficiar a sociedade — nesse caso, ao levar produtos capazes de mudar a vida das pessoas às mãos de quem precisa. Hoje, o Projeto Shakti representa 5% da receita total da Unilever na Índia. Ampliou a presença da empresa em zonas rurais e promoveu sua marca em regiões onde a mídia não está presente, criando grande valor econômico para a empresa.

Produtividade do trabalhador. A ênfase em manter o salário lá embaixo, em cortar benefícios e em produzir no exterior começa a dar lugar à consciência do efeito positivo, sobre a produtividade, do salário digno, da segurança, do bem-estar, do treinamento e de oportunidades de progresso para o trabalhador. Muitas empresas, por exemplo, sempre buscaram minimizar o custo da “onerosa” assistência médica ao trabalhador — ou até eliminar por completo essa cobertura. Hoje, grandes empresas descobriram que, devido a dias de trabalho perdidos e à queda na produtividade do pessoal, a má saúde custa mais à empresa do que a assistência médica. A Johnson & Johnson é uma. Ao ajudar o trabalhador a deixar de fumar (redução de dois terços nos últimos 15 anos) e instituir vários outros programas de bem-estar, a empresa cortou em US$ 250 milhões seus custos de saúde, um retorno de US$ 2,71 para cada dólar gasto em bem-estar de 2002 a 2008. Além disso, a Johnson & Johnson ganhou com uma força de trabalho mais presente e produtiva. Se os sindicatos também focassem mais o valor compartilhado, esse tipo de iniciativa se propagaria ainda mais depressa.

Localização. O ideário administrativo incorporou o mito de que a localização já não importa, pois a logística custa pouco, a informação flui rapidamente e os mercados são globais. Quanto mais barata a localidade, portanto, melhor. A preocupação com as comunidades locais nas quais a empresa atua evaporou.

Esse raciocínio simplista hoje está sendo questionado. Em parte, devido à alta dos custos de energia e emissões de carbono, mas também pelo maior reconhecimento dos custos de produtividade de sistemas de produção altamente dispersos e dos custos ocultos de comprar longe de casa, algo que já discutimos. O Walmart, por exemplo, abastece cada vez mais suas seções de alimentos com hortifrútis cultivados perto de seus armazéns. E descobriu que a redução nos custos de transporte e a capacidade de comprar quantidades menores mais do que compensam o preço menor de propriedades industriais de cultivo mais distantes. A Nestlé está abrindo fábricas menores mais perto de seus mercados e intensificando iniciativas para maximizar o uso de materiais disponíveis localmente.

O cálculo da instalação de atividades em países em desenvolvimento também está mudando. Grande produtora de castanha de caju, a Olam International costumava despachar o produto da África para ser processado na Ásia em instalações operadas por trabalhadores asiáticos, gente produtiva. Mas, ao abrir unidades de processamento locais e capacitar trabalhadores na Tanzânia, Moçambique, Nigéria e Costa do Marfim, a Olam cortou custos de processamento e transporte em até 25% — e reduziu enormemente as emissões de carbono. Com a mudança, a Olam também estabeleceu relações preferenciais com agricultores locais. Deu emprego direto a 17 mil pessoas — 95% delas mulheres— e indireto a um número idêntico de gente em zonas rurais onde não havia qualquer outra perspectiva de emprego.

Essas tendências podem muito bem levar uma empresa a refazer sua cadeia de valor, o que incluiria instalar certas atividades mais perto de casa e manter um número menor de grandes unidades de produção. Até aqui, muitas empresas acharam que globalizar era transferir a produção para locais com a mão de obra mais barata e projetar a cadeia de suprimento de modo a conseguir o impacto mais imediato nos gastos. Na verdade, as concorrentes internacionais mais fortes em geral serão as que criarem raízes mais profundas em comunidades importantes. Empresas que puderem assimilar esse novo raciocínio na localização vão gerar valor compartilhado.

Como ilustram esses exemplos, reimaginar a cadeia de valor da perspectiva do valor compartilhado mostrará para a empresa novos caminhos para inovar e liberar mais valor econômico — caminho que a maioria até aqui não enxergou.


Promover o desenvolvimento de clusters locais

Empresa nenhuma é autossuficiente. O sucesso de qualquer empresa é afetado por negócios de apoio e pela infraestrutura que a cerca. A produtividade e a inovação são fortemente influenciadas por “clusters”, ou concentrações geográficas de empresas, negócios correlatos, fornecedores, prestadores de serviços e infraestrutura logística numa determinada arena — como a TI no Vale do Silício, flores de corte no Quênia e corte de diamantes em Surat, na Índia.

Um cluster não inclui só empresas, mas também instituições como programas acadêmicos, associações comerciais e organizações de normalização. Também se vale de ativos públicos na comunidade a seu redor, como escolas e universidades, água potável, leis de justa concorrência, padrões de qualidade e transparência do mercado.

Clusters são importantes em toda economia regional que prospera e cresce — e exercem um papel crucial na promoção da produtividade, da inovação e da competitividade. Fornecedores locais competentes promovem uma maior eficiência logística e facilidade de colaboração, como já vimos. Capacidades locais mais sólidas em áreas como treinamento, serviços de transporte e indústrias correlatas também aumentam a produtividade. Já sem um cluster de apoio, a produtividade sofre.

Deficiências nas condições estruturais em torno do cluster também criam custos internos para empresas. Um ensino público de má qualidade acarreta custos de produtividade e de capacitação corretiva. Uma infraestrutura de transportes precária eleva custos de logística. A discriminação racial ou de gênero reduz a reserva de trabalhadores capazes. A pobreza limita a demanda de produtos e leva à degradação ambiental, a trabalhadores sem saúde e a altos custos de segurança. Com a empresa cada vez mais desconectada da comunidade, sua influência na resolução desses problemas diminuiu — enquanto seus custos subiram.

Uma empresa gera valor compartilhado ao criar clusters para melhorar a própria produtividade e, ao mesmo tempo, preencher lacunas ou corrigir falhas nas condições estruturais em torno do cluster. Iniciativas para desenvolver ou atrair fornecedores capazes, por exemplo, produzem os benefícios de suprimento que discutimos anteriormente. Observa-se, no pensamento administrativo, total ausência de um foco em clusters e em localização. A mentalidade do cluster tampouco figura em muitas iniciativas de desenvolvimento econômico, que naufragaram por envolver intervenções isoladas e ignorar investimentos complementares críticos.

Um aspecto crucial da criação de clusters em países desenvolvidos e em desenvolvimento é a formação de mercados abertos e transparentes. Em mercados ineficientes ou monopolizados onde o trabalhador é explorado, onde o preço pago a fornecedores não é justo e onde preços não são transparentes, a produtividade sofre. Viabilizar mercados justos e abertos, o que em geral é mais fácil com a ajuda de parceiros, pode permitir a uma empresa garantir um suprimento fiável e dar a fornecedores mais incentivos para a qualidade e a eficiência — e, ao mesmo tempo, aumentar consideravelmente a renda e o poder aquisitivo da população local. Disso resulta um ciclo positivo de desenvolvimento econômico e social.

Quando cria um cluster em suas principais bases de operação, a empresa também intensifica o elo entre seu sucesso e o sucesso das comunidades. O crescimento de uma empresa tem efeitos multiplicadores, pois gera emprego em setores de apoio, lança a semente de novos negócios e aumenta a demanda de serviços auxiliares. O esforço da empresa para melhorar condições estruturais para o cluster contribui para outros atores e para a economia local. Iniciativas de desenvolvimento da força de trabalho, por exemplo, aumentam a oferta de trabalhadores qualificados para muitas outras empresas também.

Na Nespresso, a Nestlé também se empenhou em criar clusters, o que tornou suas práticas de compras bem mais eficazes. A empresa buscou estabelecer operações e recursos agrícolas, técnicos, financeiros e logísticos em cada região cafeeira para garantir ainda mais eficiência e uma produção local de alta qualidade. A Nestlé liderou iniciativas para aumentar o acesso a insumos agrícolas essenciais como mudas, fertilizantes e equipamento de irrigação; fortalecer cooperativas agrícolas regionais e ajudar a financiar instalações coletivas de despolpagem por via úmida para a produção de grãos de alta qualidade; e apoiar um programa de extensão para assessorar agricultores sobre técnicas de cultivo. Também trabalhou ao lado da Rainforest Alliance — uma importante ONG internacional — para levar ao produtor práticas mais sustentáveis, que tornam mais garantido o volume de produção. No processo, a produtividade da Nestlé aumentou.

Um bom exemplo de empresa empenhada em melhorar as condições estruturais de seu cluster é a Yara, maior fabricante de fertilizantes minerais do mundo. A Yara percebeu que a falta de infraestrutura logística em muitas partes da África estava impedindo o acesso eficiente do agricultor a fertilizantes e outros insumos agrícolas essenciais, bem como o transporte eficiente da colheita ao mercado. Para enfrentar o problema, a empresa está investindo US$ 60 milhões num programa para melhorar portos e estradas e, com isso, criar corredores de crescimento agrícola em Moçambique e na Tanzânia. Essa iniciativa é tocada com governos locais e tem o apoio do governo da Noruega. Só em Moçambique, o corredor deverá beneficiar mais de 200 mil pequenos agricultores e criar 350 mil empregos. As melhorias vão contribuir para os negócios da Yara e para todo o cluster agrícola, gerando um enorme efeito multiplicador.

Criar clusters traz benefícios não só em economias emergentes, mas em países avançados também. O Research Triangle, na Carolina do Norte, EUA, é um notável exemplo de colaboração público-privada que criou valor compartilhado graças ao desenvolvimento de clusters em áreas como tecnologia da informação e ciências da vida. A região, que se beneficiou do investimento continuado tanto do setor privado como do governo local, registrou um crescimento enorme em vagas de trabalho, renda e desempenho de empresas, e se saiu melhor do que a maioria durante a crise.

Para apoiar o desenvolvimento de clusters nas comunidades em que atua, a empresa precisa identificar lacunas e deficiências em áreas como logística, fornecedores, canais de distribuição, treinamento, organização de mercado e instituições de ensino. A tarefa seguinte é se concentrar em deficiências que representam os maiores impedimentos à produtividade e ao crescimento da própria empresa e distinguir áreas que a empresa está mais bem aparelhada para influenciar diretamente daquelas em que colaborar tem melhor relação custo-benefício. É aqui que as oportunidades de geração de valor compartilhado serão maiores. Iniciativas para eliminar deficiências do cluster que limitam empresas serão muito mais eficazes do que programas de responsabilidade social focados na comunidade, que não raro têm impacto limitado, pois contemplam muitas áreas sem focar no valor.

Só que iniciativas para melhorar a infraestrutura e instituições de uma região muitas vezes exigem ação coletiva, como mostram os exemplos da Nestlé, da Yara e do Research Triangle. Uma empresa deve tentar atrair parceiros para dividir custos, obter apoio e reunir a capacitação certa. Os programas de desenvolvimento de clusters mais bem-sucedidos são aqueles que envolvem a colaboração na iniciativa privada, bem como com associações comerciais, agências públicas e ONGs.




Criando valor compartilhado na prática

Nem todo lucro é igual — ideia que se perdeu no foco estreito e imediatista do mercado financeiro e em muito do pensamento administrativo. O lucro que envolve um propósito social é uma forma superior de capitalismo — forma que permitirá à sociedade avançar mais rapidamente e, a empresas, crescer ainda mais. O resultado é um ciclo positivo de prosperidade empresarial e social que torna sustentável o lucro.

A criação de valor compartilhado pressupõe a conformidade com a legislação e com normas éticas, bem como a mitigação de qualquer dano causado pela empresa. Mas vai muito além disso. A oportunidade de gerar valor econômico através da criação de valor social será uma das mais poderosas forças motrizes do crescimento econômico mundial. Essa ideia representa uma nova forma de entender clientes, produtividade e influências externas sobre o sucesso da empresa. Põe em relevo as enormes necessidades humanas a serem satisfeitas, os grandes e novos mercados a servir e os custos internos de déficits sociais e comunitários — bem como vantagens competitivas a serem obtidas com seu enfrentamento. Até bem pouco, uma empresa simplesmente não abordava as operações sob esse prisma.

A criação de valor compartilhado será mais eficaz e muito mais sustentável do que a maioria das iniciativas empresariais de hoje na arena social. A empresa registrará verdadeiros avanços na questão ambiental, por exemplo, quando tratá-la como motor da produtividade, não como resposta cosmética à pressão externa. Ou peguemos o acesso à moradia. Uma abordagem de valor compartilhado teria levado instituições de serviços financeiros a criar produtos inovadores que aumentassem com prudência o acesso à casa própria. Foi algo reconhecido pela construtora mexicana Urbi, primeira a lançar um plano de financiamento do imóvel no esquema “alugar para comprar”. Já grandes bancos nos EUA promoveram veículos de financiamento insustentáveis que se provaram social e economicamente devastadores — ao mesmo tempo se dizendo socialmente responsáveis por contar com programas filantrópicos.

É inevitável que as oportunidades mais férteis para a geração de valor compartilhado estejam intimamente ligadas ao negócio específico da empresa, e em áreas mais importantes para o negócio. Aqui, a empresa pode se beneficiar mais economicamente e, portanto, sustentar o compromisso ao longo do tempo. É aqui também que a empresa pode aportar mais recursos e onde sua escala e presença no mercado permitem que tenha um impacto significativo sobre um problema da sociedade.




Ironicamente, muitos dos pioneiros do valor compartilhado foram aqueles com recursos mais limitados — empreendedores sociais e empresas em países em desenvolvimento. Esses atores marginais conseguiram enxergar com mais clareza as oportunidades. No processo, a distinção entre atividades com e sem fins lucrativos perde nitidez.

O valor compartilhado está definindo um novo conjunto de melhores práticas que toda empresa deve adotar. Também será parte indissociável da estratégia. A essência da estratégia é definir um posicionamento único e uma cadeia de valor distintiva que contemple essa escolha. O valor compartilhado abre muitas necessidades novas a satisfazer, novos produtos a oferecer, novos clientes a servir e novas maneiras de configurar a cadeia de valor. E as vantagens competitivas que resultam da criação de valor compartilhado em geral serão mais sustentáveis do que avanços convencionais em custo e qualidade. É possível pôr fim ao ciclo da imitação e à competição de soma zero.

As oportunidades para geração de valor compartilhado crescem e se proliferam. Embora nem toda empresa vá achar oportunidades em toda área, nossa experiência mostra que a empresa descobre mais e mais oportunidades à medida que suas unidades operacionais assimilam o conceito. Levou uma década, mas a iniciativa Ecomagination, da GE, hoje está gerando um fluxo de produtos e serviços de rápido crescimento em toda a empresa.

Toda decisão importante da empresa pode ser analisada sob a ótica do valor compartilhado. O projeto de um produto poderia incorporar benefícios sociais maiores? Estamos servindo a todas as comunidades que se beneficiariam de nossos produtos? Nossos processos e abordagens logísticas maximizam a eficiência no uso da energia e da água? Nossa nova fábrica poderia ser construída de modo a exercer um impacto maior na comunidade? Lacunas em nosso cluster estão reduzindo a eficiência e a velocidade da inovação? De que maneira? Como tornar nossa comunidade um lugar melhor para os negócios? Se pontos comerciais distintos são economicamente equivalentes, com qual deles a comunidade local se beneficiaria mais? Se uma empresa puder melhorar as condições sociais, é comum que melhore também as condições de negócios e desencadeie, com isso, loops de feedback positivo.

Os três caminhos para a geração de valor compartilhado se reforçam mutuamente. Fortalecer o cluster, por exemplo, permitirá mais compras no local e cadeias de suprimento menos dispersas. Produtos e serviços novos, que atendam a necessidades sociais ou sirvam a mercados ignorados, vão exigir escolhas na cadeia de valor em áreas como produção, marketing e distribuição. E novas configurações da cadeia de valor vão gerar demanda de equipamentos e tecnologia que poupem energia, conservem recursos e deem apoio a trabalhadores.

A criação de valor compartilhado exigirá métricas concretas e customizadas para cada unidade de negócios em cada uma das três áreas. Certas empresas começam a monitorar uma série de impactos sociais, mas poucas já vincularam esses impactos a seus interesses econômicos no plano mercadológico.

A geração de valor compartilhado envolverá formas novas — e superiores — de colaboração. Embora certas oportunidades de valor compartilhado possam ser exploradas pela empresa sozinha, outras irão se beneficiar de conhecimentos, capacitação e recursos que transponham as fronteiras da atividade com ou sem fins lucrativos e do setor público ou privado. Aqui, a empresa terá menos sucesso se tentar resolver sozinha um problema social, sobretudo quando este envolve o desenvolvimento do cluster. Além disso, grandes rivais podem ter de trabalhar juntas em condições estruturais pré-competição, algo pouco comum em iniciativas de RSE para melhorar a reputação. A colaboração de sucesso será movida a dados, claramente ligada a resultados definidos, condizente com objetivos de todas as partes interessadas e monitoradas com métricas claras.

Governos e ONGs podem viabilizar e reforçar o valor compartilhado ou obstruir sua geração (leia mais sobre o tema no quadro “Normas do governo e valor compartilhado”).




A próxima evolução no capitalismo

O valor compartilhado é a chave que irá abrir a próxima onda de inovação e crescimento nas empresas. Além disso, vai reconectar o sucesso da empresa e o sucesso da comunidade de um jeito que ficou esquecido numa era de abordagens de gestão tacanhas, raciocínio imediatista e crescente divisão entre as instituições da sociedade.

O valor compartilhado faz a empresa se concentrar no lucro certo: o lucro que gera — em vez de reduzir — benefícios para a sociedade. O mercado de capitais sem dúvida seguirá fazendo pressão para que empresas deem lucro a curto prazo, e certas empresas certamente seguirão registrando lucro à custa de necessidades da sociedade. Só que esse lucro em geral terá curta duração; oportunidades muito maiores serão perdidas.

O momento para uma visão ampliada da geração de valor chegou. Uma série de fatores, como a crescente conscientização social de trabalhadores e cidadãos e a crescente escassez de recursos naturais, abrirá oportunidades sem precedentes para a geração de valor compartilhado.

Precisamos de uma forma mais sofisticada de capitalismo — forma imbuída de um propósito social. Mas esse propósito não deve surgir da caridade, mas de um entendimento mais profundo da concorrência e criação de valor econômico. Essa próxima evolução do modelo capitalista reconhece novas e melhores maneiras de desenvolver produtos, atender a mercados e erguer empreendimentos produtivos.

A geração de valor compartilhado representa uma concepção mais ampla da mão invisível de Adam Smith. Abre as portas da fábrica de alfinetes a um leque maior de influências. Não é filantropia, mas um comportamento que, ditado pelo interesse próprio, busca gerar valor econômico pela geração de valor social. Se toda empresa buscasse individualmente o valor compartilhado ligado a suas atividades específicas, o interesse maior da sociedade seria atendido. E a empresa adquiriria legitimidade aos olhos das comunidades em que atua — o que faria a democracia funcionar, pois o governo adotaria políticas de fomento e apoio à atividade empresarial. No final, ainda venceria o mais forte, mas a disputa no mercado beneficiaria a sociedade de um jeito que já não ocorre.

A geração de valor compartilhado representa uma nova abordagem à gestão — abordagem que engloba várias disciplinas. Devido à tradicional divisão entre interesses econômicos e sociais, indivíduos nos setores público e privado em geral seguiram caminhos educacionais e profissionais muito distintos. Como resultado, poucos gestores têm a compreensão de questões sociais e ambientais exigida para extrapolarem a atual abordagem de RSE, e poucos líderes do setor social têm formação administrativa e mentalidade empreendedora para conceber e implementar modelos de valor compartilhado. A maioria dos cursos de administração ainda ensina a visão estreita do capitalismo, ainda que mais e mais alunos anseiem por um senso maior de propósito e um número crescente seja atraído para o empreendedorismo social. Os resultados são oportunidades perdidas e um público cético.

O currículo da escola de negócios terá de se expandir numa série de áreas. O uso e o manejo eficientes de toda forma de recursos, por exemplo, vão definir a próxima geração de ideias sobre a cadeia de valor. Disciplinas de marketing e comportamento de clientes terão de ir além da persuasão e da geração de demanda; terão de estudar necessidades humanas mais profundas e descobrir como servir a grupos de clientes fora do tradicional. Clusters e influências maiores do lugar sobre a produtividade e a inovação na empresa serão um novo núcleo temático em cursos de administração; o desenvolvimento econômico deixará de ser seara exclusiva de departamentos de políticas públicas e economia. Matérias sobre a iniciativa privada e o poder público examinarão o impacto econômico de fatores sociais sobre empresas, indo além dos efeitos da regulamentação e da macroeconomia. E a área financeira terá de rever como o mercado de capitais pode de fato promover a geração de valor real na empresa — seu propósito básico — em vez de apenas beneficiar participantes do mercado financeiro.

Não há nada de imaterial no conceito de valor compartilhado. As mudanças propostas no currículo de escolas de negócios não são qualitativas e não rejeitam a geração de valor econômico. Representam, antes, o próximo estágio em nossa compreensão de mercados, concorrência e administração de empresas.

Nem todo problema da sociedade pode ser resolvido com soluções de valor compartilhado. Mas o valor compartilhado dá a empresas a oportunidade de utilizar sua capacitação, seus recursos e sua capacidade de gestão para promover o progresso social de um jeito que até a mais bem-intencionada das organizações do poder público e do setor social dificilmente poderia igualar. No processo, a empresa pode voltar a ter o respeito da sociedade.

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Michael E. Porter é titular da cátedra Bishop William Lawrence University Professor da Harvard University, nos EUA. Mark R. Kramer é diretor-gerente da consultoria especializada em impacto social FSG, que fundou com Porter. Kramer pertence à iniciativa de RSE da Kennedy School of Government (Harvard University).