23 de jan. de 2008

MAS QUEM, AFINAL, É ESTE TAL DE MIGUEL?

ABRAHAM SHAPIRO

Você faz idéia do que é a diferença de percepção das pessoas? Qual a influência das percepções de todos os que nos rodeiam sobre nossas inferências? Quanto as usamos para calibrar nossas próprias percepções? Abaixo há uma série de relatos de um episódio da vida de "Miguel", um personagem fictício criado para responder a estas perguntas. Cada fala foi feita por alguma pessoa que teve contato com ele ao longo de um período e que emitiu uma descrição sobre ele. São fatos ocorridos durante um dia de sua vida.

Tente definir quem é Miguel. Primeiro, use os relatos das pessoas e veja a quais traços você consegue chegar. Depois, conheça Miguel por ele mesmo. Faça, então, uma comparação entre o que você conseguiu concluir através dos relatos e do que adveio da própria fala de Miguel.


RELATO Nº1 - Da mãe de Miguel

Miguel levantou-se correndo, não quis tomar café e nem olhou para o bolo que eu havia feito especialmente pare ele. Só apanhou uma pasta onde estavam suas anotações. Não quis nem colocar o cachecol que eu lhe dei. Disse que tinha pressa e reagiu com impaciência a meus pedidos para se alimentar e abrigar-se direito.

Ele continua sendo uma criança que precisa de compreensão, pois nem reconhece o que é bom para si mesmo.


Após esse relato como você percebe Miguel? Tente defini-lo.


RELATO Nº2 Do garçom da boate

Ontem à noite Miguel chegou aqui acompanhado de uma morena, muito bonita, por sinal. Mas não deu a mínima para ela. Logo que entrou uma loura, trajando um vestido colante, ele me chamou e queria saber quem era ela. Como eu não a conhecia, ele não teve dúvidas: levantou-se e foi à mesa falar com ela.

Eu disfarcei, mas pude ouvir que ele marcava um encontro às 9 da manhã bem nas barbas do acompanhante dela. Sujeito peitudo esse!


Após esse relato como você percebe Miguel? Tente defini-lo.


RELATO Nº3 Do motorista de táxi

Hoje de manhã, apanhei um cliente. Não fui com o jeito dele, não. Estava de cara amarrada, seco, não queria saber de conversa. Tentei falar sobre futebol, política, sobre trânsito e ele se desfazia de mim não pronunciando uma palavra sequer.

Desconfio que ele seja um subversivo ou até terrorista, afinal, há tantos bandidos por aí, desses que a polícia anda procurando. Temi que ele pudesse até ser um assaltante de motoristas de táxi. Aposto que anda armando. Fiquei louco para me livrar dele o quanto antes. Êta sujeitinho estranho
.

Após esse relato como você percebe Miguel? Tente defini-lo.


RELATO Nº4 Do zelador do edifício

Esse Miguel não é certo da bola, não! Às vezes cumprimenta, às vezes finge que não vê ninguém. Não há quem entenda as conversas dele. É parecido com um amigo meu que enlouqueceu.

Hoje de manhã, por exemplo, ele chegou falando sozinho. Eu dei bom dia e ele me olhou com um olhar estranho e disse que tudo no mundo é relativo, que as palavras não são iguais para todos e as pessoas também não são. Deu um puxão na minha gola e apontou para uma senhora que passava. Disse, também, que quando pintava um quadro, aquilo, sim, é que era a realidade. Dava risadas e mais risadas... Esse cara é um lunático!


Após esse relato como você percebe Miguel? Tente defini-lo.


RELATO Nº5 Da faxineira

Ele anda sempre com um ar misterioso. Os quadros que ele pinta, eu não consigo entender. Quando ele chegou, na manhã de ontem, me olhou meio enviesado.

Tive um mau pressentimento como se fosse acontecer alguma coisa ruim. Pouco depois chegou uma moça loura, desconhecida. Ela me perguntou onde ele estava e eu disse. Daí a pouco ouvi ela gritar e acudi correndo. Abri a porta de supetão e ele estava com uma cara furiosa olhando para ela cheio de ódio. Ela estava jogada no divã. No chão tinha uma faca. Eu saí gritando: Assassino! Assassino!

Após esse relato como você percebe Miguel? Tente defini-lo.


O Relato do próprio Miguel sobre o ocorrido nesse dia

Meu nome é Miguel. Eu me dedico à pintura, de corpo e alma. O resto, para mim não tem qualquer importância.

Sou solteiro e vivo em casa de meus pais. Minha mãe é uma super-mãe. Trata de mim como se eu ainda fosse uma criança. Mesmo em dias quentes, acha que vou ficar gripado se não me agasalhar do modo como ela quer. E tem mais. Se eu for comer tudo que ela faz especialmente para mim, em poucos dias vou passar dos cem quilos.

Há meses que eu quero pintar uma Madona do século XX, mas não encontro uma modelo adequada que encarne beleza, pureza e sofrimento que eu desejo retratar através de minha arte.

Na véspera daquele dia, uma amiga me telefonou dizendo que tinha encontrado a modelo que eu procurava e propôs que nos encontrássemos na boate. Eu estava ansioso para vê-la. Quando ela chegou fiquei fascinado; era exatamente o modelo artístico que eu queria. Não tive dúvidas. Já que o garçom não a conhecia, fui até a mesa dela, apresentei-me e propus a ela posar para mim. Ela aceitou e marcamos um encontro no meu ateliê às 9 horas da manhã.

Naquele dia, eu não pude tomar café, de tão afobado e ansioso que estava. Tomei um táxi e, já dentro do carro comecei a fazer um esboço, pensando nos ângulos da figura, no jogo de luz e sombra, na textura, nos matizes... Nem notei que o motorista falava comigo.

Chegando ao edifício onde fica meu ateliê, eu falava baixinho comigo mesmo. O zelador falou-me algo, mas nem prestei atenção. Aí, eu perguntei: o que foi? E ele disse: bom-dia! Nada mais do que bom-dia. Ele não sabia o que aquele dia significava para mim. Sonhos, fantasias e aspirações... tudo iria se tornar real, enfim, com a execução daquele quadro. Eu tentei explicar para ele que a verdade é um conceito relativo e que cada pessoa vê a outra à sua própria maneira. Ele me chamou de lunático. Eu dei uma risada e disse: está aí a prova do que eu disse. O lunático que você vê em mim, não existe.

Já dentro do prédio, dei de cara com aquela velha mexeriqueira, a faxineira do edifício. Entrei no ateliê e comecei a preparar a tela e as tintas. Foi quando minha tão sonhada modelo chegou. Estava com o mesmo vestido da véspera e explicou que passara a noite em claro numa festa. Eu pedi a ela que sentasse no lugar indicado e que olhasse para o alto, que imaginasse inocência, sofrimento... e que... Aí ela me enlaçou o pescoço com os braços e disse que eu era muito simpático. Eu afastei-a de mim e perguntei se ela tinha bebido. Ela disse que sim, que a festa estava ótima, que foi pena eu não ter estado lá e que pensou em mim todo o tempo. Enfim, ela confessou estar gostando de mim. Quando ela me enlaçou de novo eu a empurrei e ela caiu no divã. Neste momento, ela gritou. Num piscar de olhos, a faxineira entrou e saiu berrando: Assassino! Assassino!

A loira levantou-se e foi embora. Antes chamou-me de idiota. Eu suspirei ao ver que tudo estava perdido e que não conseguiria realizar meu grande sonho. Foi então que eu lamentei: Ah, minha Madona!
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Abraham Shapiro é consultor e coach de líderes. Sua filosofia de trabalho, em uma só palavra, é: simplicidade. Contatos: shapiro@shapiro.com.br ou (43) 8814 1473