11 de set. de 2007

OS CANTOS DA SEREIA

MATÉRIA DO FANTÁSTICO - REDE GLOBO - 09/SETEMBRO/2007

Segunda-feira é o dia oficial de começar aquela dieta, de voltar pra ginástica. E também é o dia oficial de adiar tudo isso. Por que será que a gente deixa para depois o que poderia fazer hoje e cai, sempre, no canto das sereias?

Segunda-feira é o dia oficial de começar aquela dieta, de voltar pra ginástica. E também é o dia oficial de adiar tudo isso. Por que será que a gente deixa para depois o que poderia fazer hoje e cai, sempre, no canto das sereias?

As sereias eram criaturas sobre-humanas de extraordinária beleza. Viviam numa ilha no Mar Mediterrâneo desde o começo dos tempos. Graça ao irresistível poder de sedução do seu canto, tinham o dom de atrair os navegantes e, em seguida, elas os devoravam sem piedade.

Um dia, Ulisses – heróis de grandes batalhas, navegava por aqueles mares. Ele sabia que não resistira ao canto das sereias. Por isso, ordenou aos seus tripulantes que, quando chegasse a hora, tapassem os próprios ouvidos com cera e o amarrassem no mastro central do navio.

Quando a hora chegou, Ulisses se viu rendido ao canto das sereias. Fez de tudo para convencer os tripulantes que o soltasse. Mas ninguém obedeceu às suas ordens. Ulisses quase enlouqueceu de desejo, mas resistiu. As sereias, por sua vez, afogaram-se de desgosto no mar.

As sereias estão por toda parte. Se bobear, cada homem faz seu próprio naufrágio.

Um vaga-lume a um palmo do nariz parece maior que as estrelas do céu. Da mesma forma, o que está longe no tempo não tem o brilho e o apelo do que está logo ali, ao alcance da mão. Ou quase.

A coisa mais fácil desse mundo é jurar fidelidade eterna no dia do casamento. Ou decidir parar de fumar, mas só no mês que vem. Por que o que parece tão fácil de ser feito no conforto da distância, se torna tão complicado e difícil de cumprir no calor da hora?

O jovem Agostinho, quando ainda não era santo, dizia: "Dai-me a castidade e a virtude, mas não já". Quem é tão firme que nada pode seduzir?

Ninguém escolhe sentir o que sente. Agir no tempo guiado pela lógica e pela razão é um ideal que está sempre sujeito a reviravoltas inesperadas.

Duas grandes ameaças rondam nossas ações no tempo. São como ilusões de ótica, alterações de foco na visão que temos do presente e do futuro. A 'miopia temporal' é uma delas.

A 'miopia' é pecar pelo excesso de imediatismo e de impaciência. O prazer do momento nos faz sonhar acordado e esquecer o amanhã.

A 'miopia temporal' ocorre quando damos um valor exagerado ao que está próximo de nós no tempo, em prejuízo do que se está mais afastado.

Parece fácil corrigir a miopia quando a tentação anda longe. É como jurar não exagerar na bebida quando se está de ressaca, ou decidir começar a dieta na segunda que vem.

A 'hipermetropia' é o contrário da 'miopia': ela acontece quando damos um valor excessivo ao amanhã em prejuízo do aqui e agora. É o caso do José Adelço, que chega a cortar um palito de fósforo ao meio para melhor aproveitá-lo.

"É, eu dou muito valor ao futuro. Eu sou seguro no que é meu, não dou nada pra ninguém porque o que eu ganho é suado. Sempre me chamou de pão duro, outros me chamam de agarrado. Mas isso tudo são coisas passageiras, são coisas do folclore, aí eu também não me importo com isso. Tio patinhas e vários outras coisas", conta José Adelço.

"O cara que me pedir o pão, eu dou a massa. E se me pedir o peixe, eu dou o anzol para ele aprender a pescar. Porque se você der o pão a ele, que já é feito, ele nunca vai aprender a fazer o pão. E se você me pedir o peixe e eu der o peixe, você nunca vai aprender a ser pescador", explica José Adelço.

"Tudo que se move na Terra é por dinheiro. Me mostre uma coisa que se mova, a não ser as plantas, que o vento balança. Tem que ganhar dinheiro, até o sacristão da igreja ganha", diz José Adelço.

Nos casos de hipermetropia temporal, pecamos por um excesso de prudência e um temor exagerado em relação ao futuro. Uma preocupação perfeitamente natural com saúde, dinheiro ou beleza podem se tornar obsessões que arruínam uma vida.

No caminho que vai do berço ao túmulo, estamos sempre tentando ajustar o foco de nossas escolhas no tempo, pois as armadilhas são muitas.

Por que é tão difícil avaliar de forma equilibrada os termos de troca entre presente e futuro sem cair em armadilhas? O que se passa exatamente conosco quando, por exemplo, estamos tentando controlar a bebida e um amigo nos convida para uma noitada na Vila Mimosa? Desfrutar o momento ou cuidar do amanhã?

Toda vez que situações como essas se apresentam, uma seqüência de alterações químicas e elétricas ocorre nos bilhões de células nervosas de nosso cérebro.

"O funcionamento do sistema nervoso é um processo extremamente interessante porque você tem conjuntos de estruturas que funcionam de forma articulada, mas de forma independente. Esse processamento independente faz com que o resultado da atividade de uma determinada equipe seja diferente da atividade de uma outra equipe. Essas duas equipes funcionando dentro da mesma cabeça, da mesma pessoa. Na verdade duas equipes é uma redução enorme. A gente tem várias equipes competindo e várias apostando em respostas diferentes, em conflito com o seu chefe, você pode querer explodir e falar palavrão ou, ao contrário, se controlar e pensar melhor, ou sair com uma ironia fina, ou ser vingativo", explica Luiz Eugênio Mello, neurocientista da Unicamp.

Essas pesquisas nos ajudam também a compreender por que um mesmo indivíduo é capaz de lidar de maneira muito distinta com diferentes aspectos da sua vida. Como o Eduardo Bittencourt, por exemplo.

"Eu tenho 31 anos, trabalho em consultório, sou psicanalista. Eu trabalho, em média, oito horas por dia, normalmente no período da manhã e à noite, eu geralmente deixo as tardes livres, onde eu estudo, onde eu pratico parkour. Me perguntam muito como um psicólogo, um psicanalista pode tá fazendo uma atividade tão diferente, aparentemente arriscada. Tem muitos lados dentro da gente. Eu tenho dois lados fundamentais que são o lado da organização e o lado da transgressão. A transgressão, quando adequada, ela é extremamente positiva, ela nos faz repensar, mas ela mais do que tudo é um desejo humano", diz Eduardo.

A cigarra e a formiga habitam o cérebro de cada um de nós e se revezam no governo das escolhas que fazemos no tempo.

Por um lado, o império dos sentidos. A tentação nossa de cada dia, bombardeada por estímulos e propaganda, aumenta de forma desproporcional o valor que damos ao presente. Parece que o futuro pode esperar.

A outra face da moeda é o excesso de autocontrole. Essa armadilha pode ser o caminho de um grave descontrole. A idolatria do corpo e do dinheiro a qualquer preço, a castidade e outros sacrifícios desumanos podem levar a mente ao abismo.

Como disse o filósofo Novalis "Cada ser humano é uma pequena sociedade". E todo santo dia temos que negociar e renegociar com os nossos desejos.