9 de jan. de 2011

SINAGOGA FLOR DO ABACATE

Artigo delicioso e muito bem escrito sobre alguns momentos importantes da vida Judaica na cidade do Rio de Janeiro.

Zevi Ghivelder

Não acredito que exista algum registro mais expressivo referente à interação entre os imigrantes judeus radicados no Rio de Janeiro e o espírito carioca do que aquele que aconteceu ali pelo final da década de 40 envolvendo o Yom Kipur (Dia do Perdão), a data mais sagrada do calendário judaico, e uma famosa gafieira chamada Flor do Abacate, situada na rua do Catete entre as ruas Almirante Tamandaré e Machado de Assis, do lado direito de quem vai para o centro da cidade.

A Flor do Abacate abrigava bailes de carnaval e, durante o ano, nas noites de sexta, sábado e domingo a elite dos compositores, cantores e instrumentistas da escola de samba da Mangueira. A orquestra era ao vivo e seus componentes caprichavam no vestuário: ternos brancos, chapéus tipo palheta e sapatos com duas cores. Quanto à negritude dançante, a maioria fazia questão de alisar os cabelos, tanto os homens quanto as mulheres, Naquele tempo não havia uma só sinagoga no bairro do Flamengo e adjacências. O judeu que quisesse cumprir o ritual do jejum e orações tinha que se deslocar até o Grande Templo, situado na rua Tenente Possolo, perto da Praça Cruz Vermelha. Como raríssimos imigrantes possuíam automóveis, para chegar ao Grande Templo a viagem tinha que ser feita em dois bondes, tendo a Lapa como estação intermediária.

Foi então que alguém teve uma idéia brilhante: alugar o salão da Flor do Abacate e transformá-lo em sinagoga no próximo Yom Kipur. Como a celebração judaica aconteceria em um dia da semana, os responsáveis pela gafieira aceitaram cedê-la por um preço que, acredito, deve ter sido apreciável. Uma comissão foi incumbida de vistoriar o local e logo se deparou com um empecilho. Junto a uma das paredes da gafieira havia um monumento a São Jorge, com a escultura do santo montado a cavalo, prestes a derrotar o raivoso dragão. Ora, os judeus, ao longo dos séculos, jamais mantiveram símbolos ou estátuas em suas casas de orações. Era preciso remover o São Jorge ou, caso contrário, o aluguel seria cancelado. Foi uma batalha que se estendeu por alguns dias.

Os judeus permaneciam irredutíveis e o pessoal da gafieira também, porque mexer no São Jorge poderia significar, no mínimo, um mau presságio. Os inquilinos por um dia chegaram a propor aumentar o valor do aluguel. Nada feito. São Jorge era inamovível. Enfim, depois de muitas discussões, chegou-se a um consenso: o santo ficaria, porém coberto por um pano, como se não existisse. Assim foi feito e assim consumou-se a Sinagoga Flor do Abacate à qual compareceram mais de uma centena de devotos, todos rezando de costas para o São Jorge e de frente para um altar improvisado que continha os rolos da Torá. Se não me engano, aquela foi a única vez em que o Yom Kipur foi ali celebrado. Os judeus não gostaram daquela intromissão envolta em tecido branco, bem como o pessoal da gafieira ficou temendo uma futura represália do santo.

Nasci no Rio de Janeiro e jamais vivi em outra cidade. Sou um autêntico judeu carioca da segunda geração, filho de imigrantes da Bessarábia. Lembro-me de uma pensão em que morávamos na rua Senador Correia, perto da Praça São Salvador, nas imediações de Laranjeiras. Um dos hóspedes da pensão era o professor Pessach Tabak, um erudito, autêntico pioneiro na implantação de escolas judaicas no Rio, onde além do currículo normal eram diárias as aulas do idioma iídiche. Ele foi o fundador do Colégio Sholem Aleichem, nome dado em homenagem àquele que é considerado o mais importante escritor em íidiche de todos os tempos. O colégio ficava situado na zona norte, em uma rua perto da Praça Saenz Peña e ainda não dispunha de ônibus para o transporte dos alunos. Para mim e outros garotos da minha idade, que deveríamos cursar o primário, era simplesmente impossível chegar até lá. Quando se diz que a prioridade máxima do povo judeu se concentra na educação, é verdade. O professor Tabak fez um acerto com um motorista de táxi que vinha à Zona Sul para pegar uns cinco ou seis meninos e meninas que se espremiam no veículo e, depois das aulas, trazia-nos de volta. Não me lembro quanto tempo duravam essas jornadas no táxi, mas lembro-me do ônibus do qual a escola passou a dispor. De onde eu morava no Flamengo até o colégio, contando as sucessivas paradas para pegar as crianças pelo caminho, a viagem consumia algo em torno de uma hora e meia.

Depois do colégio judaico, meus pais me matricularam no curso de admissão do então Lycée Français, que passou a chamar-se Colégio Franco Brasileiro, situado no começo da rua das Laranjeiras. Ali estudei até concluir o segundo grau, um tempo feliz. A mais grata lembrança que guardo do Liceu (era como sempre o chamávamos) foi a do Dia D, 6 de junho de 1944, a invasão da Normandia pelos aliados. Naquele dia não houve aula. Logo pela manhã, todos os alunos foram reunidos no pátio da escola, hasteou-se a bandeira da França, cantamos a Marselhesa e fomos dispensados. Não posso precisar a estatística, porém creio que de vinte a trinta por cento dos alunos do Liceu eram judeus. 

Afirmo, com a mais absoluta convicção, que eu e os demais judeus jamais sofremos nenhuma discriminação no decorrer de todos os anos em que freqüentamos o curso secundário. Apenas, havia um judeu no colégio cujo sobrenome era Zebulum. Então, o Albino Pinheiro, o já falecido e consagrado general da Banda de Ipanema, talvez seduzido pela sonoridade daquele nome, tinha o hábito de chamar todos os judeus de Zebulum. Mas era um tratamento carinhoso, longe de qualquer reserva ou deboche. Ocorreu, entretanto, um momento de fricção. Tínhamos uns 16 anos quando foi anunciada a vinda ao Rio de uma equipe de basquete americana formada por jogadores todos judeus que, se bem recordo, ia enfrentar o Fluminense. Alguém me perguntou para quem eu torceria e não hesitei em responder, recheado de atavismo, que ia torcer pelos judeus. Meu interlocutor disse: “Mas, afinal, você é brasileiro ou judeu?” Retruquei, surpreso e aturdido, que torcer pelos judeus era uma questão de tradição, que havia poucos judeus no mundo, que seis milhões haviam sido assassinados pelos nazistas em campos de extermínio, e que portanto eles mereciam meu apoio. A sorte é que o jogo não era contra o Flamengo, do qual sou aficionado eloqüente. Aí, realmente, eu não saberia o que responder. A propósito, vale contar um episódio de muitos anos atrás. Regressando de uma viagem à Holanda, contei ao meu filho, que tinha uns sete anos, sobre a visita que havia feito à casa de Anne Frank e o que com ela havia acontecido. Ele ouviu e comentou: “Mas, papai, se isso acontecesse conosco, a gente tirava a mezuzá da porta e ninguém ia saber que nós somos judeus”. (A mezuzá é um pequeno tipo de amuleto que contém um pergaminho com uma inscrição bíblica fixado no batente direito das casas das famílias judias). Respondi: “Não, meu filho, a gente nasce judeu e fica judeu para sempre”. E ele: “Que nem Flamengo, não é?”

Essa simbiose entre judaísmo e carioquice não se deveu ao fato de o meu filho ser neto de imigrantes. Os próprios imigrantes judeus logo assimilaram boa parte do espírito carioca no que diz respeito à irreverência e a uma dose de malandragem. Correram entre eles alguns apelidos hilariantes. Havia, por exemplo, um judeu de comportamento grosseiro que só era conhecido como Mossoró, nome do cavalo vencedor do primeiro Grande Prêmio Brasil, do Jockey Club, em 1933.

Chamavam-no de Mossoró porque julgavam-no um grande cavalo. Outro se apossou da antiga expressão “não chacoalha”, usada nas ocasiões mais próprias ou impróprias. Resultado: ficou conhecido como Jacó Não Chacoalha. Outro, em vez de dizer “grande coisa”, significando algo irrelevante, só dizia “coisa grande”, Passou a ser o Miguel Coisa Grande. A partir da década de 40, todas as lojas de móveis da rua do Catete, com raras exceções, pertenciam a judeus. Um deles tinha um método infalível para aumentar o faturamento. Ele ficava na loja e a filha, sua auxiliar, num jirau. Quando alguém lhe perguntava o valor de uma mercadoria, ele gritava para a filha: “Eu não tenho de cabeça. Você sabe quanto é esta cadeira?” A moça respondia lá de cima: “Setenta!” E ele dizia ao cliente: “Custa sessenta”. Fechava a venda na hora e a dita cadeira decerto não valia mais do que trinta. Em certas lojas, alguns pintores acadêmicos deixavam seus trabalhos em consignação porque se alguém estivesse montando uma casa era bem possível que precisasse de um ou mais quadros para completar a decoração. Em uma ocasião, o dono de uma das lojas estava atendendo a uma senhora que apontou para uma das pinturas e disse: “Muito bonita essa natureza morta”. E ele: “...tereza morta que nada, para a senhora vai ser uma galinha morta”. (Para quem não se lembra, galinha morta é sinônimo de pechincha). Uma das minhas histórias preferidas é a do judeu que vendeu para a freguesa um conjunto de estofados. Decorrido pouco tempo, ela voltou à loja e reclamou: “Seu fulano o senhor me vendeu o conjunto por tanto, pois eu acabo de ver em outra loja ali adiante o mesmíssimo conjunto muito mais barato”. O dono da loja reagiu como se tivesse sido fulminado pelo mais terrível dos insultos, seus olhos gotejaram lágrimas e ele respondeu: “Pois é, mas a madame ignora que o meu conjunto foi feito com izgadal veiscadash”. Para a compradora só restou dizer: “Ah, bom, então o senhor me desculpe”. Acontece que izgadal veiscadash são as primeiras palavras do kadish, a oração judaica pelos mortos. Perfeita malandragem carioca.

Depois da pensão, fomos morar ali perto, em um apartamento no número 239 da rua Paisandu. Era uma boa moradia, com sala e três quartos, abrigando meus pais e três filhos, eu, Moisés e Joel.

Ficávamos num só quarto porque o terceiro era alugado para um judeu americano solteiro de modo a completar o orçamento familiar. Meus pais haviam chegado ao Brasil com passaportes romenos porque, na revolução comunista de 1917 os bolcheviques perderam para a Romênia o território da Bessarábia. Assim, embora ambos tivessem tido uma formação eminentemente russa, eles se tornaram cidadãos romenos, querendo ou não. Em 1941, quando a Alemanha rompeu o pacto Hitler-Stalin e invadiu a União Soviética, a Romênia imediatamente aliou-se aos nazistas e dedicou-se com afinco à tarefa de assassinar judeus, além de incorporar seu exército aos invasores que iam conquistado vastas porções de territórios russos. Tenho três lembranças distintas do tempo em que moramos na rua Paisandu. Quase todos os dias da semana, por volta das duas da tarde, o presidente-ditador Getúlio Vargas, saía do Palácio Guanabara, no fim da rua, e vinha descendo-a a pé com o carro da segurança acompanhando-o lentamente pelo asfalto. Na esquina da rua Marques de Abrantes, ele entrava no automóvel e seguia para o Palácio do Catete, sede do governo. Na caminhada, Getúlio cruzava as mãos atrás das costas e a molecada, inclusive eu, corria atrás dele gritando: “Doutor Gegê! Doutor Gegê!” Ele sorria e à medida que andava, ia soltando moedas que disputávamos para recolher. Enfim, comprei muitas balas com as moedas largadas pelo doutor Getúlio Vargas. A outra recordação foi a de uma multidão passando em frente ao meu prédio, aclamando o craque Leônidas, centro-avante do Flamengo, sentado na capota de um carro aberto. Ele havia feito o gol da vitória num Fla-Flu. (O estádio do Fluminense ficava ao lado do Palácio Guanabara). E lembro-me, ainda, das passeatas que vi passar pela rua Paisandu, rumo ao palácio, conclamando que o Brasil declarasse guerra ao Eixo ─ Alemanha nazista, Japão e Itália.

A declaração de guerra acabou sendo consumada em agosto de 1942, o que provocou um terremoto em nossa família. Poucos meses depois, o governo emitiu um decreto proibindo que os chamados súditos do Eixo morassem em um raio circular de 500 metros a partir do Palácio Guanabara. Como a Romênia se havia aliado à Alemanha, meus pais a rigor eram romenos e, portanto, ficavam inscritos como súditos do Eixo. Entretanto, a princípio, isto não os preocupou. Afinal de contas eram judeus. Como alguém poderia imaginar que judeus estivessem aliados ao nazismo? Uma pessoa, entretanto, imaginou ou fingiu acreditar. Seu nome era João Valente de Sousa, mais conhecido apenas como Valente, membro da guarda pessoal do presidente que, anos mais tarde, foi preso e condenado como cúmplice do atentado a Carlos Lacerda na rua Tonelero, episódio que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas. Esse valente Valente passou a atormentar meu pai até a exaustão. Meu pai e minha mãe tinham porque tinham que se mudar da rua Paisandu pois eram súditos do Eixo. Meu pai argumentava que era judeu, que precisava de mais tempo, que era época de guerra e havia falta de apartamentos no Rio de Janeiro, que não tinha para onde ir de uma hora para outra com mulher e três filhos pequenos. Seus apelos foram inúteis por um motivo irremediável: o Valente queria o apartamento para ele mesmo. Seria-lhe muito conveniente morar num lugar de onde pudesse ir pé para o trabalho no palácio.

Numa tarde de 1942, o Valente bateu na porta de nossa casa com ar benevolente. Afinal de contas, disse que compreendia as razões até então apresentadas e apenas pediu que meu pai o acompanhasse até o DOPS, o temido Departamento de Ordem Política e Social, onde prestaria um depoimento, declinando as justas razões pelas quais não podia sair do apartamento. Assim estaria tudo resolvido. No entanto, ali chegando, meu pai foi trancafiado numa cela onde já se encontravam cinco pessoas desconhecidas de boa aparência. Passou a primeira noite no xadrez e também mais dois dias e duas noites, sem que nada lhe perguntassem ou fizessem alguma acusação. Minha mãe entrou em desespero, carente de qualquer notícia. Procurou o general, depois marechal, Cordeiro de Farias que era nosso vizinho de andar. Não o encontrou. 

O general estava no Rio Grande do Sul, onde era interventor. A essa altura, três amigos de meu pai decidiram ir até o DOPS para apurar o que estava acontecendo. Foram recebidos com hidrófoba aspereza e aconselhados a se retirarem imediatamente, senão também seriam presos. Meu pai, pelo que depois ficamos sabendo, estava na companhia de alemães, suspeitos de pertencerem a uma célula de quintas-colunas, sem dúvida uma situação bastante constrangedora para um judeu. Os prisioneiros organizaram um torneio de xadrez do qual meu pai foi o vencedor e, por isso, passou a ser tratado com deferência pelos demais. No sexto dia, o general voltou de viagem, atendeu ao apelo de minha mãe e foi ao DOPS onde mandou libertar meu pai. Entretanto, a lei era a lei: meus pais eram de fato súditos do Eixo e a família teria que sair do apartamento da rua Paisandu. Fomos todos parar em um quarto na pensão da dona Augusta, mais uma vez perto da praça São Salvador.

Na verdade, a ditadura de Getúlio não foi particularmente benévola com os judeus. Documentos revelados em livro pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro, de São Paulo, aponta vários membros do governo Vargas que eram declarados anti-semitas. Tanto durante como depois da Segunda Guerra Mundial havia decretos secretos limitando a concessão de vistos de entrada no Brasil para judeus. Existem, inclusive, instruções expedidas para diplomatas brasileiros sobre como reconhecer um judeu no melhor estilo da Alemanha nazista. Nesse contexto, o caso emblemático foi a deportação de Olga Benário Prestes para a Alemanha, onde morreu num campo de concentração.

Por volta de 1946, finda a guerra, a comunidade de judeus cariocas vivia uma cisão, quase um estado de beligerância. De um lado os sionistas, entre os quais meu pai se alinhava, e os comunistas que se rotulavam como progressistas, até hoje não sei porque. Os sionistas estavam convictos de que a questão judaica só seria resolvida se os judeus tivessem uma pátria própria, na antiga Palestina. 

Os progressistas argumentavam que o anti-semitismo era decorrente da luta de classes. Portanto, a partir do momento em que não mais houvesse luta de classes, também não haveria anti-semitismo. Dentre os sionistas agia um militante oculto que jamais participava das atividades comunitárias. Era um judeu culto e sofisticado, de origem polonesa-alemã, chamado Menasche Shepitsky. Ele era alto executivo das empresas do banqueiro e grande empresário E.G. Fontes, o único particular que naquele tempo operava no Brasil um aparelho de telex para seus negócios de importação e exportação. Lá pelas tantas, o DOPS foi alertado de que o dito telex estava recebendo e transmitindo indecifráveis mensagens em código. Fontes foi intimado a dar explicações e convocou Shepitsky, o responsável pelo telex. Ele resolveu contar a verdade. Estava em contato com o escritório da Agência Judaica instalado em Nova York, chefiado pelo futuro prefeito de Jerusalém, Teddy Kollek, encarregado de comprar armas e munições e enviá-las sob inúmeros disfarces para os judeus que, mais cedo ou mais tarde, teriam que lutar por um estado próprio e soberano na Palestina. 

A América do Sul, quase toda governada por ditadores que faziam o que bem entendiam, dispunha de armas em profusão e ele as estava comprando em obediência a um complicado esquema de transportes navais. O empresário Fontes disse que estava de acordo e acendeu-lhe um sinal verde, para que Shepitsky pudesse prosseguir em sua importantíssima tarefa clandestina.

Naqueles anos, a primeira geração de filhos de imigrantes judeus afluía quase na totalidade para as universidades do Rio de Janeiro com a finalidade de se tornarem profissionais liberais nas mais diversas áreas de atuação, como de fato acabaram se destacando como médicos, engenheiros, advogados, etc. Seu centro de reunião, enquanto estudantes e recém-formados, era um clube chamado Cabiras, localizado numa sobre-loja de um prédio da Cinelândia. A par das atividades sociais, como bailes e jantares, o clube fervia no caldeirão esquerdista, ainda mais que o partido comunista tinha voltado para a legalidade depois da queda de Vargas, em 1945. O sionismo era desprezado e escorraçado. Daquele grupo saiu como candidato a vereador pelo partido comunista o engenheiro David Lerner, que não foi eleito.

Mas, no contingente sionista, a atividade era apaixonada e incessante. Crianças e adolescentes, já nascidos no Brasil, passaram a integrar os chamados movimentos chalutzianos (da palavra chalutz que em hebraico significa pioneiro). Os primeiros grupos começavam já aos sete ou oito anos de idade e se estendiam até os dezoito ou vinte, sempre aplicados em atividades sociais e atentos para incontáveis palestras sobre a história judaica e do movimento sionista. O objetivo final dessas associações era a emigração para a Terra Santa. Porém, onde há quatro judeus sempre há cinco opiniões divergentes. Os jovens, apear de imbuídos pelos mesmos ideais, se dividiam conforme crenças ideológicas. O Hashomer Hatzair, socialista ferrenho, admirador da União Soviética, pregava a ida para os kibutzim (colônias agrícolas coletivas que viviam em absoluto regime igualitário); o Dror, socialista menos radical, também propunha a ida para os kibutzim; o Bnei Akiva, abrigava sionistas de orientação religiosa; e o Betar, filiado ao movimento sionista revisionista, pregava a luta armada contra os mandatários ingleses na Palestina. Ao todo, creio que pelo menos umas cinco mil crianças e adolescentes judeus chegaram a integrar esses movimentos.

O ano de 1947 foi eletrizante. O movimento sionista ganhava mais terreno e reconhecimento internacional e as atenções dos judeus de todo o mundo convergiam para as Nações Unidas onde seria votada, no dia 29 de novembro, a partilha da Palestina entre árabes e judeus, sessão a ser presidida pelo estadista brasileiro Oswaldo Aranha. Já se passaram quase 63 anos, mas não consigo resistir ao chavão: parece que foi ontem. Quando a partilha foi aprovada, meu pai pegou-me pela mão e fomos para o número 114 da avenida Rio Branco, sede da Organização Sionista Unificada do Brasil. Lembro-me que quando a porta do elevador se abriu no 11º andar, deparamo-nos desde o corredor até o salão principal com uma envolvente e ruidosa celebração. A euforia era contagiante. Sobre uma mesa, cantava e dançava o Israel Dines, pai do Alberto Dines. Sobre outra mesa estava o Jacob Schneider, presidente incansável da Unificada. 

A maioria dos ativistas era de origem ashkenazi (provenientes da Europa central). Mas também havia dois proeminentes líderes sionistas da comunidade sefaradi (judeus oriundos da Espanha, Portugal, norte da África e Oriente Médio), Tufic Nigri e Salvador Esperança ao lado de comandantes dos movimentos juvenis, o arquiteto David Reznik, do Hashomer, e Efraim Bariach, judeu gaúcho, do Dror. Ali estavam, inclusive, o professor-reitor Inácio do Azevedo Amaral e o deputado federal Hamilton Nogueira, defensores públicos da causa judaica. Os ditos progressistas ficaram em suas casas, ignorando aquela data histórica, atitude da qual viriam a se arrepender anos mais tarde quando foram revelados os crimes de Stalin e o anti-semitismo tornou-se uma política oficial na União Soviética. Muitos progressistas acabaram aderindo ao sionismo e dele nunca mais se afastaram. No ano seguinte, lembro-me de meu pai e seus amigos grudados nas transmissões do Repórter Esso, “o primeiro a dar as últimas”. Foi através da voz do locutor Heron Domingues que acompanharam nas ondas dos rádios a vitória do recém-criado Estado de Israel contra seis países árabes invasores na guerra pela independência.

As relações diplomáticas entre o Brasil e Israel foram instituídas em 1949, mas o primeiro embaixador de Israel no Brasil, o general David Shaltiel, só apresentou suas credenciais ao presidente Getúlio Vargas no dia 8 de abril de 1952. A cerimônia teve lugar no Palácio do Catete ou, melhor dizendo, em toda a rua do Catete, onde os judeus donos das lojas de móveis, e milhares de outros vindos de todos os cantos do Rio de Janeiro, formaram uma multidão em torno da sede do governo. Quase não houve o que ver. Shaltiel, fardado, desceu de um carro, fez uma rápida continência e entrou no Palácio. Depois, por causa do tumulto, saiu pelo jardim situado nos fundos do prédio. Naquela tarde, um judeu que morava em nossa rua, a Almirante Tamandaré, encontrou-se com meu pai e lhe disse ainda comovido: “Você viu o embaixador apresentando as condolências ao Getúlio?” Meu pai o corrigiu: “Desculpe, mas não se diz condolências, se diz credenciais”. Ao que o homem retrucou: “Você sempre tem a mania de implicar com tudo que eu digo”.

Reitero que jamais sofri no Brasil, pelo menos que eu saiba, qualquer restrição pelo fato de ser judeu. Houve apenas duas ocorrências, uma agradável e outra desagradável. A primeira foi em 1980 quando me elegeram presidente da Organização Sionista do Rio de Janeiro, tendo obtido 80 por cento dos votos dos inscritos. Preparei, então, uma nota que enviei ao Jornal do Brasil, dizendo que as eleições realizadas no clube Hebraica tinham sido livres e democráticas. Acentuei a circunstância livres e democráticas, só para cutucar, porque era o tempo da ditadura militar. 

No dia seguinte recebi um telefonema de congratulações do José Aparecido de Oliveira que me perguntou: “Você pode me ensinar esse truque de ganhar eleições com oitenta por cento?” O incidente desagradável deu-se anos antes no bar Antonio’s no Leblon, que eu frequentava quase diariamente. Um amigo, pessoa até hoje conhecida nos meios intelectuais, razão pela qual omito seu nome, ali veio ao meu encontro, meio de porre, e disse: “Sabe, eu gosto muito de você, apesar de você ser judeu”. Respondi: “Fulano, você é meu amigo e portanto nem vou levar a sério o que você acaba de dizer. Mas, segue meu conselho: evita repetir esse tipo de manifestação porque hoje em dia os judeus estão batendo forte”.