ANA LUISA LEAL
Revista Exame, São Paulo - A fabricante de sorvetes
paulistana Diletto é um fenômeno. Quando a empresa nasceu, em 2008, encontrar
sorveterias artesanais de qualidade no Brasil era uma tarefa inglória. Hoje, há
dezenas delas em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Salvador.
A pioneira Diletto fatura estimados
50 milhões de reais por ano e tem como sócio, desde 2012, o bilionário Jorge
Paulo Lehmann. Parte do sucesso se deve, claro, ao sorvete. Seu fundador, o
administrador Leandro Scabin, apostou em ingredientes nobres, como pistaches
colhidos na região do vulcão Etna, na Sicília, framboesas orgânicas da
Patagônia, cacau do Togo.
Mas é inegável que a Diletto recebeu
um belo impulso de uma história única. A inspiração para criar os picolés veio
do avô de Leandro, o italiano Vittorio Scabin. Sorveteiro da região do Vêneto,
Vittorio usava frutas frescas e neve nas receitas até que a Segunda Guerra
Mundial o forçou a buscar abrigo em São Paulo.
Seu retrato e a foto do carro que
usava para vender sorvete aparecem nas embalagens da Diletto e ajudaram a
construir a autenticidade da empresa. “La felicità è un gelato”, costumava
dizer o nonno Vittorio aos netos. É um golaço de marketing, mas há apenas um
porém: o nonno Vittorio nunca existiu.
O avô de Leandro Scabin de fato veio
do Vêneto, mas se chamava Antonio e teria chegado ao país duas décadas antes da
Segunda Guerra. Nunca fabricou sorvetes. Antonio era paisagista e cuidava dos
jardins das casas das famílias ricas de São Paulo. As fotos dele e do carrinho
de sorvete impressas nas embalagens da Diletto são peças publicitárias.
Leandro Scabin criou o personagem
com o sócio Fabio Meneghini, ex-diretor da agência de publicidade WMcCann, e
com a ajuda do dono da agência, Washington Olivetto. “A empresa não teria
crescido tanto sem a história do avô e o conceito visual que construímos.
Como eu convenceria o cliente a
pagar 8 reais num picolé desconhecido?”, diz Leandro Scabin. “Mas reconheço que
posso ter ido longe demais na história.” Perguntado, ele afirma que usa — mesmo
— framboesas orgânicas da Patagônia, coco da Malásia, cacau do Togo e pistache
vulcânico da Sicília.
O “nonnogate” da Diletto é o retrato
de um tipo de estratégia que extrapola os limites do marketing — e que está em
plena moda no mundo dos negócios. Para conquistar espaço, as empresas se
preocupam cada vez mais em contar histórias que as diferenciem dos concorrentes
— técnica conhecida como storytelling.
É uma tendência mundial, motivada
por uma mudança no comportamento do consumidor. Hoje, os clientes não querem apenas
saber se o bife é saboroso — mas se o boi foi ou não engordado em áreas de
queimada. Se o cacau do chocolate beneficia pequenos agricultores. Se a
castanha-de-caju é colhida por quilombolas.
Se o suco é feito por jovens
cansados da mesmice. Sob muitos aspectos, é uma mudança benéfica, que coloca em
evidência empresas que não se preocupam apenas em lucrar. Mas muita gente
percebeu que quem tem uma boa história para contar acaba lucrando ainda mais.
A companhia americana de bebidas
Fiji Water, que extrai água mineral de uma cratera vulcânica no arquipélago de
Fiji, no Pacífico, cobra o dobro da concorrência. Sua história, de fato, é
matadora.
A empresa diz que ajuda a população
local — financiando a construção de escolas e hospitais — e que a água, “única”,
faz bem à saúde. Ninguém se importa que a água seja transportada por dezenas de
milhares de quilômetros, uma loucura do ponto de vista ambiental. Uma prova de
que o storytelling colou.
Mas a tentação de ir um pouquinho
além e simplesmente inventar uma história tem se provado grande demais. Um caso
extremo é a varejista americana Abercrombie & Fitch. A marca que leva o
nome da companhia é de 1892. Mas quando o atual presidente, Mike Jeffries,
criou a marca Hollister, em 2000, inventou uma história para lá de rebuscada.
Diz a lenda que a Hollister foi
criada em 1922 pelo americano John Hollister. Filho de banqueiro, ele se formou
na Universidade Yale, trabalhou numa plantação de borracha na Indonésia e casou
com uma jovem local. No caminho de volta para casa, se encantou com o trabalho
dos artesãos das ilhas do sul do Pacífico.
Resolveu abrir uma galeria chamada
Hollister para vender essas obras. Coube ao filho John Jr., um dos maiores
surfistas de sua geração, transformar a galeria do pai em loja de roupas
inspiradas no surfe. O público adora. Mas é tudo cascata.
Marketing
sonhático
Produtos com ingredientes orgânicos
e fabricados respeitando as tradições locais tendem a ganhar pontos. Por isso,
um número crescente de empresas exagera um tantinho na hora de se “vender”. A
fabricante carioca de sucos Do Bem, criada em 2007, publica verdadeiros
manifestos em suas caixinhas.
A Do Bem não usa açúcar, corantes ou
conservantes para fazer uma “bebida verdadeira”. Um desses manifestos diz que
suas laranjas, “colhidas fresquinhas todos os dias, vêm da fazenda do senhor
Francesco do interior de São Paulo, um esconderijo tão secreto que nem o
Capitão Nascimento poderia descobrir”.
Os sucos custam cerca de 10% mais do
que os da concorrência. Mas as laranjas não são tão especiais assim. Na
verdade, quem fornece o suco para a Do Bem não é seu Francesco, que jamais
existiu, mas empresas como a Brasil Citrus, que vende o mesmo produto para as
marcas próprias de supermercados.
Em nota, a empresa disse que não
comenta a política de fornecedores e que o personagem Francesco é “inspirado em
pessoas reais”. Até grandes empresas estão enveredando para esse marketing
mais, digamos, sonhático. A Coca-Cola, por exemplo, lançou em 2011 no Brasil um
suco chamado Limão & Nada.
A promessa, a julgar pelo nome, era
que aquele fosse um suco natural de limão. Mas a bebida tinha outros
ingredientes na formulação, açúcar entre eles, e acabou saindo de linha no ano
passado. A Coca-Cola diz, em nota, que os ingredientes eram informados na
embalagem e que o nome não pretendia confundir o consumidor.
Nos Estados Unidos, uma reportagem
desmascarou dezenas de destilarias de uísque ditas artesanais. Algumas delas,
criadas há poucos anos, vendiam bebidas envelhecidas 15 anos, o que chamou a
atenção de consumidores mais desconfiados. Descobriu-se que mais de 40 marcas
compravam uísque de um mesmo fornecedor, a fábrica MGP, uma das maiores do
país, localizada no estado de Indiana.
Entre as desmascaradas está a
Breaker Bourbon, que afirmava produzir sua bebida numa destilaria nas montanhas
douradas da costa californiana. “Todo mundo tem uma história boa e verdadeira
para contar. As empresas não precisam ser desonestas com seus clientes”, diz
Mauricio Mota, sócio da agência de conteúdo The Alchemists.
Para o publicitário Washington
Olivetto, presidente da WMcCann, que ajudou na criação da Diletto, “um lindo
produto merece uma linda história”. Se a história for verdadeira, tanto melhor.
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